Estante

A cuidadosa edição da obra Do Partido Único ao Stalinismo, ora apresentada pela Alameda Editorial, de autoria da historiadora e militante revolucionária Angela Mendes de Almeida, cuja capa de uma sensibilidade intensa, projetada por Nicolau Bruno, resume a essência do conjunto de acontecimentos dispostos em vários capítulos: a tragédia stalinista. Tragédia que demarca porque em países que conheceram tal desventura humana, uma hegemonia construída a ferro e fogo, faz com que, até os dias que correm, o comunismo postulado por Marx e Engels seja identificado com a fome, o controle social pelo aparato estatal-militar, os desaparecimentos, castigos, torturas, extermínios, mutilações, aprisionamentos de familiares, que não podem ocultar a sangria da perda de seus próximos, de parcelas de nossa própria humanidade. Não há como apagar da memória o que foram os presídios e campos de trabalho forçado, um sistema conhecido pela sigla GULAG. A imagem de Saturno devorando carne humana, o sangue escorrendo ao meio dos escombros da arquitetura da destruição stalinista fornece, assim como a carta de Pietro Tresso, na epígrafe, anuncia a longa caminhada desta obra monumental e de caráter histórico-universal.

Não é à toa, que nossa artífice em sua maioridade intelectual, ancorada na lucidez revolucionária, nos oferece uma crítica robusta do fenômeno stalinista. Seja na epígrafe selecionada ou nas páginas finais, quando trata do revolucionário Pietro Tresso que nos legou, como se fossem versos poéticos sobre esta desumanidade produzida pela própria esquerda. Em uma carta de intenso sentimento, como um canto dos afetos, Tresso escreve à Gabriella Maier, da prisão militar de Lodève, França, em novembro de 1942, que como Angela sabe muito bem, sintetiza a alma humanitária que deveria presidir todas as nossas ações contra o inumano, brutalidades, atrocidades e desastres desta guerra impulsionada pela forma mentis do stalinismo e aplicadas por seus sequazes. Na epígrafe:

“É impossível suportar em silêncio aquilo que fere os sentimentos mais profundos dos homens. Não podemos admitir como justos os atos que sentimos e sabemos serem injustos; não podemos dizer que o que é verdadeiro é falso e que o que é falso é verdadeiro, sob o pretexto de que isso serve a uma ou a outra força presente. Definitivamente, isso recairia sobre a humanidade inteira e, portanto, sobre nós mesmos; e destruiria a própria razão de nosso esforço. Desculpe-me, querida amiga, por esta digressão.”

A caça aos antigos revolucionários bolcheviques como ficou cristalizado nos “Processos de Moscou” (1936-1938), na farsa dos julgamentos jurídicos, o terrorismo oficial a ameaçar os familiares e seus destinos previamente traçados. Estes mesmos processos sumários que foram praticados em outros países e, como na Espanha revolucionada, após “As jornadas de maio” de 1937, os assassinatos dos anarquistas e poumistas. Alcançando um dos maiores revolucionários bolcheviques, Liev Trótski, que foi brutalmente assassinado em Coyoacán, no México, por um mercenário stalinista.

O mundo do pseudossocialismo operacionalizou uma plêiade de monstruosidades e mentiras que cristalizavam as manobras para o extermínio de camaradas. Desde a crise aberta pelo “social-chauvinismo” em 1914, Angela Mendes de Almeida descreve a gênese dessas atividades e os termos de condenação de uns contra outros, que estarão nas disputas entre as concepções honestas e decisivas de Rosa Luxemburgo, reconhecendo a exemplaridade e universalidade dos sovietes, mas ponderando acerca das consequências da centralização numa pequena vanguarda. Segundo Rosa, não existe socialismo por decreto, pelo alto. “A emancipação do trabalho é obra da própria classe trabalhadora”, não se cansava de repetir o lema internacionalista. Nossa historiadora destrinça com minudências históricas o nascimento da III Internacional Comunista, em 1919. Expondo os significados das “21 condições” nos documentos oficiais, escritas por Lênin, revela as consequências práticas das imputações, das múltiplas cisões e das dissidências contra o “modelo russo”.

A história ganha sentido com nossas e nossos artífices. A urgência história para a refundação de uma Nova Internacional da classe trabalhadora necessita, para dar um passo à frente, revisitar o quadro de suas mazelas: a história da III Internacional, seu antimarxismo, como a doutrina do socialismo em um só país, a concepção do partido único a devorar literalmente seus “dissidentes” e o fenômeno do stalinismo a partir de suas circunstâncias e condições materiais de produção e reprodução histórico-concretas. É impossível expor todas as nuances. István Mészáros demonstrou a continuidade do capital estatal não-apropriado socialmente, na antiga URSS e seus satélites, como uma transição impossível, como uma impossibilidade de atingir uma nova forma de sociometabolismo, um novo modo de produção. Trótski deixou estampado essa ordem “totalitária”, antes de ser assassinado por um agente de Stálin, Ramon Mercader, que a ordem social, além do controle repressivo, violento de quaisquer opositores (as), mantinha uma hierarquia social, mantinha o assalariamento, a extração do mais-valor pela “casta burocrática” e, ainda, a captura de satélites para a realização de uma impossibilidade histórica.

Quando chega na avaliação crítica da linha da Comintern do “Terceiro período” o livro detalha a incrível guinada da III Internacional que considera como o “inimigo do povo” a social-democracia, um partido de massas, já enquadrada como “alma gêmea” do nazi-fascismo, como “social-fascismo”. O desastre desta posição faz com que não atuando no enfrentamento do nazismo, conseguiu poupar e dar alento a sua ascensão.

No prefácio à obra, Michael Löwy destaca a sua importância, qualificando-o como única em nossa historiografia, abarcando o conjunto da história do movimento comunista e criticando como centro a função do stalinismo e seus crimes. Há que acrescentar sua divergência sobre a gênese do Partido Único como tronco inaugural do sistema stalinista. Claro que Angela problematiza esta gênese com as mediações necessárias e inscritas nas contradições sociais dadas nas circunstâncias históricas, no complexo das particularidades históricas, na situação das guerras intercapitalistas, imperialistas, e depois voltadas para destruir as primeiras postagens de uma sociedade governada – era a proposta originária – pelos sovietes, com direções escolhidas pela base, mas com as prisões de socialistas, anarquistas, e a criação de estruturas repressivas como a Checa, atinge a própria revolução social e autodeterminação dos indivíduos livres, alçando ao desmonte da organização pela base, com a substituição dos comitês fabris por gestões impostas pelo alto, ditatorialmente, com indivíduos oportunistas, até a criação da secretaria geral ofertada a Trótski, com sua recusa, aberta para Stálin e sua orgânica própria, constituída por vários seguidores stalinistas, em suma, escolhas do partido único pelo alto e, ao largo do processo, o desmonte das estruturas dos sovietes.

Lukács destrinçou a forma mentis de Stálin, com a supressão do objetivo final própria à revolução social, e a transformação da linha da III Internacional por formulações taticistas, sem a estratégia revolucionária, centradas na doutrina do socialismo num só país, porém, não alcançou as determinações histórico-concretas e a função contrarrevolucionária do fenômeno do stalinismo. Essa doutrina stalinista abandona a luta internacionalista, da mesma forma a revolução social com a autodeterminação de indivíduos livres, aplicando o mesmo modelo e método ossificado para refrear os embates revolucionários, compondo em frentes populares e, falsificando as proposituras de Trótski, que estavam alicerçadas em Marx e Lênin, sobre o desenvolvimento desigual e combinado do capital, perspectivando a revolução permanente em direção à uma sociedade sem classes, com o defenecimento do aparelho estatal, sem hierarquia social, com a emancipação do trabalho.

Neste trabalho soberbo, Angela não sucumbe aos defeitos do stalinismo, as imputações farsescas, mentirosas, arbitrárias, ao revés, pratica o que Marx sempre praticou: a crítica imanente dos objetos reais em sua integridade, seja ideal, seja material, escavando nos processos reais seus momentos significativos e que vão lançando luz às objetividades construídas pelas ações práticas, sociais, sensíveis, conscientes. Os crimes do stalinismo são examinados em minudências, em todas as suas formas e conteúdos, ancorados em uma vasta documentação, que só sua história de vida, sua personalidade pessoal básica, o seu amor à humanidade, tal como desejava um caminho libertário a militante revolucionária Rosa Luxemburgo.

Na revolução social e guerra civil espanhola (1936-1939), Angela Mendes de Almeida demonstra o aporte soviético que concentrou os poderes republicanos, construindo um verdadeiro estado policial, operacionalizando os mesmos métodos virulentos contra os anarquistas, poumistas (identificados ao trotskismo), quando Andreu Nín, Juan Andrade, e Joaquín Maurín, do POUM, tinham divergências com a orientação de Trótski para a Espanha. E a imputação também criminosa de que eram agentes infiltrados sob as ordens de Hitler. Claro, Andreu Nín, um dos intelectuais mais generoso e preparado de sua geração, havia militado na URSS com Trótski e, posteriormente, denunciava a perseguição à Oposição de Esquerda.

Quanto às Brigadas Internacionais, a historiadora anota que elas nasceram no interior da própria NKVD, e na Espanha, sob as vestes da III Internacional, fez o papel sujo de prender, torturar e assassinar as principais lideranças anarquistas e do POUM. Sob o comando de Palmiro Togliatti (o “Alfredo”) e Josip Broz (mais tarde conhecido como Marechal Tito) os terceiristas massacraram os “inimigos do povo”, articulando-se com os republicanos burgueses que restaram e com a palavra de ordem: “aqui não haverá revolução social”. Por essa razão, as propriedades coletivizadas foram devolvidas aos antigos patrões. Uma das ações mais notáveis dos jornaleiros e camponeses espanhóis foi sua adesão à coletivização, como fica claro no filme Terra e Liberdade, de Ken Loach. Daí, estava franqueado o controle do Exército Popular pelo PCE, com a logística repressiva às esquerdas revolucionárias e a prisão de todos os dirigentes das milícias antifascistas.

Sua crítica de talhe marxiano atenta para os conflitos entre as chamadas esquerdas no meio da guerra civil, quando o presidente Largo Caballero declina às propostas contrarrevolucionárias da direção russa e do PCE e do PSUC, da Catalunha, de prender as lideranças e destruir as organizações revolucionárias da CNT-FAI, do POUM, e parcelas da UGT, abrindo espaço para a repressão generalizada do governo Juan Negrín. As “jornadas de maio de 1937”, na Catalunha, como ficou conhecido o conflito armado entre anarquistas versus os membros do PSUC. Como escreve Angela:

"No dia 7, sentindo-se fortes, o PSUC e os stalinistas saíram de seus esconderijos e começaram a repressão. Além dos cerca de 500 mortos e mil feridos dos quatro dias de enfrentamento, somaram-se os assassinatos seletivos como os de Alfredo Martinez, líder das juventudes anarquistas, do teórico italiano do anarquismo, Camillo Bernieri e de seu colaborador Francesco Barbieri, cujos corpos foram encontrados mutilados por torturas.” (ALMEIDA, 2021: 233-4)

Além disso, delineia essa repressão contra os batalhadores e batalhadoras das milícias antifascistas, quando versa sobre os assassinados na Espanha, concentrando-se no caso da “Operação Nicolai”, que envolvia a prisão, tortura e desaparecimento do líder do POUM, Andreu Nín. Citando o comunista Jesús Hernández, a historiadora descreve como Andreu Nín, sendo ferozmente torturado, não cedia, em nada.

“Ele resistia. Seus carrascos se impacientavam. Decidiram abandonar o método ‘seco’ pela prova da ‘firmeza’: a pele arrancada, os músculos rasgados, o sofrimento físico levado até o último limite de resistência humana. (...) Após alguns dias, seu rosto era apenas uma massa informe de carnes inchadas.” (HERNÁNDEZ apud ALMEIDA, 2021: 392-3)

A ultradireita inscrevia nos muros das cidades: “Donde está Nín, em Salamanca ou Berlim”. Ora esta nobre liderança, após ser torturado e despedaçado, até hoje não se sabe em qual fossa foi jogado! Anos se passaram para que os nomes dos assassinos de Nín se revelassem; em suas Memórias, Pável Sudoplátov, destacado policial de um setor do NKVD, destaca a figura de Aleksandr Orlov, elogiando-o como o “sequestrador de trotskistas”.

Um dos momentos de muita sensibilidade da autora é quando cuida dos desmandos da III Internacional na Revolução Espanhola. A Comuna de Astúrias de 1934 reuniu pela primeira vez na Espanha uma Frente Única da classe trabalhadora. É claro que adotando a linha da Frente Popular, os stalinistas passaram a criticar essa “doença infantil” do comunismo. Na Catalunha, em especial em Barcelona nasceram as Alianças Obreiras. Ao contrário dos sovietes que se organizavam por meio de representação eleita – um a cada quinhentos(as) obreiros (as), a representação dos sindicatos e associações operárias eram por tendências, ou seja, dispositivos revolucionários de vanguarda. Assim, as tendências revolucionárias, como a Esquerda Revolucionária de Andreu Nín e o Bloco Obreiro e Camponês (BOC), de Joaquín Maurín, mais os grupos dissidentes da CNT, com o novo Partido Sindical, sob a liderança de Pestaña, antigo dirigente anarquista, se compõem para ações conjuntas em direção à greve geral em todas as regiões, com a UGT de Largo Caballero e da ala esquerda do PSOE.

E, um dos “trotskistas” executado pela NKVD na Espanha, o brasileiro Alberto Besouchet, após as “Jornadas de Maio” de 1937, havia se integrado à luta revolucionária contra os fascistas, os franquistas, falangistas, carlistas, Requetés. Angela detalha o perfil biográfico deste lutador do Partido Comunista brasileiro, à época PCdoB, cujos irmãos e irmã eram também filiados ao partido. Seguindo a carreira militar como seu pai, Besouchet se aventura na luta armada do levante comunista de 1935, no Recife. Mesmo ferido conseguiu escapar da repressão, viaja para a França, adentrando nas Brigadas Internacionais. Como acentuou Apolônio de Carvalho, também brigadista, Besouchet foi o primeiro brasileiro a chegar a Espanha para lutar e levava uma carta de Mário Pedrosa para Andreu Nín, mas foi assassinado covardemente como “trotskista”.

Angela Mendes de Almeida tem consciência de que essa história não tem um ponto final. Há que desenvolver a crítica marxista da história da tragédia do stalinismo. Como dizia Rosa Luxemburgo, a autocrítica é a essência do movimento comunista. Sem inferir uma dialética de que em todo processo há um lado bom e um lado mal. Isto certamente não pertence à concepção ontológica da história de Marx. E também não à toa, ela destaca as intervenções de Pietro Tresso, com sua lucidez marcante, ao reconhecer a coragem dos soldados russos no esmagamento das forças nazistas, todavia não pode apagar a concretude histórica, pois,

“Os fatos permanecem o que são e se percebe cada vez mais que o stalinismo, com sua ‘ideologia’, sua política, seu gangsterismo em todos os assassinatos, longe de ser uma barreira ao fascismo, facilita o seu controle sobre as massas e se torna um auxiliar de suas vitórias”. (TRESSO apud ALMEIDA, 2021: 446).

Angela não se esquece de reafirmar as fases destrutivas para abrir a verdadeira construção, a vida autêntica, enquanto se refere a Rosa Luxemburgo, a sua referência revolucionária por excelência. Daí a sua insistência na luta da Rosa Vermelha: “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade?”

Há que propor ante esta obra de envergadura e essencial para as lutas do presente a investida e tarefa revolucionária, pois é uma obra histórico-universal, o que implica a sua disseminação para o corpo social, a fim de atingir o maior leque de indivíduos que prima pelo embate anticapitalista e a superação do sociometabolismo do capital e todas as formas de Estado.

Antonio Rago Filho leciona as disciplinas de Teoria da História, História e Arte, História Contemporânea, do Departamento de História da FCS da PUC-SP. É coordenador do – Núcleo de Estudos de História: Trabalho, Ideologia e Poder (NEHTIPO) da PUC-SP