Em parte, essa história está contada. É a primeira sensação causada pelo filme Vala Comum, do cineasta João Godoy, que resgata o triste episódio conhecido como As ossadas de Perus. Episódio que aterrorizou tanto os que conheciam o drama sobre "desaparecimentos" políticos da década de 70, quanto aqueles que ainda idealizavam de forma romântica o destino dos heróis da resistência de esquerda no Brasil.
Aberta em setembro de 1990, a vala clandestina do cemitério Dom Bosco, no distante bairro de Perus, periferia oeste da cidade de São Paulo, acabou revelando como se dava efetivamente os "desaparecimentos". Apesar de não descartar a possibilidade de que muitos corpos tenham sido trucidados, jogados ao mar e até desaparecido em fornos ou caldeirões industriais - na insinuação de um ex-delegado da época - a constatação, a partir da divulgação da vala, foi a de que a maioria dos corpos era enterrada mesmo em cemitérios municipais, em covas normais e com a ciência de todos os órgãos públicos: secretarias de segurança, prefeituras, IMLs e, é claro, serviços funerários.
O filme mostra a "geléia geral" vivida no país. O clima político a partir do golpe de, 64, o primeiro e o quinto atos institucionais, o período do milagre econômico de Médici em meio a tudo isso, as manifestações de rua contra a ditadura militar. Para alguns dos que estavam em meio às passeatas, o destino foi o Dom Bosco. "O dia dos cegos" - 13 de dezembro de 1968 -, como retratou o Jornal do Brasil em primeira página, romperia com os últimos resquícios de liberdade. Costa e Silva baixava o AI-5, cortando assim todas as de organização sindical e e estudantil. Daí até meados de 70, a repressão não daria trégua a ninguém.
Através de depoimentos dos familiares, Godoy consegue amarrar de forma inédita tudo o que aconteceu durante este período de sombra e solidão. "Não haveria alternativa", como lembrou Gertrud Mayr. O destino de seu filho teria duas opções: a tortura ou a clandestinidade. A maioria optou pela segunda e muitos viveram as duas alternativas. Prisão, tortura, clandestinidade, resistência, prisão, tortura... morte. Assim foi a vida de centenas de pessoas que ousaram desafiar o status quo colocando sua própria carne em jogo.
Já nos anos 80, a população brasileira descobriu que toda aquela luta não havia sido em vão. Políticos de diversas tendências de esquerda, centro-esquerda e até centro-direita subiram de mãos dadas nos palanques e, em nome dos que morreram nos porões, pediam Díretas-Já. Frustrada a primeira tentativa, os acordos de bastidores determinaram a eleição de Tancredo no Colégio Eleitoral. Veio Sarney, diretas com Collor e são poucos os que hoje ainda pedem o esclarecimento de todas aquelas mortes.
Mas o que se fez aqui apresentou resultados importantes e esclarecedores sobre como normalmente se conta a história política de um país, em especial a do Brasil. Desde os primeiros livros, a criança brasileira aprende que as coisas acontecem na história porque alguém fez acontecer. O lado de lá, ou seja, a luta do povo é sempre descartada. Quando lembrada, é sufocada em conseqüência de uma repressão ensinada às crianças como legítima. Canudos, Palmares foram derrotas impostas para se garantir a "segurança" da Nação e por aí afora.
Por isso, resgatar a trajetória dos mortos e "desaparecidos" deste período recente não é importante apenas do ponto de vista do direito de seus familiares obterem uma satisfação dos governos sobre como e por que morreram seus filhos, pais, irmãos ou companheiros. O resgate é necessário mesmo para por todas como os fatos realmente aconteceram e não como eles querem que sejam contados. Essa é uma questão cultural para a formação das gerações que aí estão e para as que estão por vir. As coisas não acontecem por acaso e ninguém é louco o suficiente para se submeter às mais bárbaras torturas a troco de nada. Então, a obstinação de alguns grupos de Direitos Humanos e da Comissão de Familiares para que se investigue e se revele as mortes nestes últimos 30 anos da nossa história não é e nunca foi em vão.
Um exemplo do resultado positivo dessa luta é a abertura para o público dos arquivos do Dops. Em São Paulo, eles foram abertos na segunda-feira, dia 5 de dezembro de 1994. A grande imprensa procurou repercutir, é óbvio, as fichas de Fernando Henrique Cardoso e de integrantes da equipe econômica do real, por exemplo, a de Pérsio Arida, ex-militante da Var-Palmares.
Mas, nestes arquivos, fatos como a Guerrilha do Araguaia foram totalmente "limpados". Alguns estudiosos afirmam que são poucas as informações inéditas que ainda restaram naqueles papéis. De qualquer forma, foi importante sua abertura porque uma lei federal, sobre preservação das informações, durante 30 anos após a ocorrência de um determinado fato, foi driblada e finalmente o público em geral terá acesso às fichas escritas ao longo de dezenas de anos sobre personagens políticas e culturais brasileiras, até aproximadamente 1982. Podem surgir desses arquivos muitos artigos e livros sobre o assunto tanto de forma coletiva quanto em relação aos protagonistas ali fichados.
Nesse caso, também o diretor de Vala Comum pode ser considerado um cidadão deste público geral. Não participou, nem teria idade para isso, da luta contra a ditadura de 60 e 70. Ele, como outros que poderão surgir, integra uma nova geração da arte brasileira que pode criar muitas obras para que se repense o Brasil.
Enquanto durou a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Desaparecidos, trabalho de quatro vereadores da Câmara de São Paulo, que investigou a procedência da vala e ouviu dezenas de depoimentos em caráter oficial, a trajetória de alguns ativistas foi recriada e pode ser recontada publicamente. Nas dezenove pastas de documentos resultantes do processo é possível encontrar material para muitos anos de trabalho. Os autores de livros, teatro etc. com certeza vão descobrir que muito pouca coisa mudou no Brasil daqueles anos para cá. Na verdade, o ocorrido com a vala de Perus é algo considerado normal enquanto forma de tratamento àqueles que um dia nasceram e caminharam por estas praças. Não há qualquer consideração ou reconhecimento pela vida dos que partiram. O porquê disso acontecer é tão evidente que dispensa comentários. Se não existe afinal respeito aos vivos, por que se teria com os mortos?
A impressão que se tem é a de não se querer estabelecer uma relação com a outra. Ou melhor, os que continuam por aqui parecem imaginar que ficarão para sempre. Não fosse esse o pensamento predominante, a situação vivida atualmente pelos cidadãos dos morros cariocas, revistados diariamente quando entram e saem de casa por soldados do Exército, teria recebido pelo menos da esquerda inteligente os mais altos protestos de indignação. O silêncio que paira sobre a invasão de privacidade de milhares de pessoas e que pode resultar na invasão de movimentos organizados da população é de uma covardia espantosa. Ninguém quer mexer no assunto. Virou moda o "combate ao crime organizado" e por isso os direitos individuais dos pobres podem ser violados à vontade. Ninguém lembra que a história repressiva dos anos 60 havia começado usando pobres de cobaia. Dali para a classe média organizada nas entidades estudantis foi um pulo... de gato. Sem barulho, sem estardalhaço, o pulo repressivo às forças de esquerda foi calculado milimetricamente. Nesse ponto, é bom lembrar, voltando à vala comum de Perus, que ainda persiste a conotação "indigente" para os que têm e para os que nunca tiveram um registro de identidade.
Pois foi desta forma que a maioria dos ativistas baixou às sepulturas municipais. Com o rótulo de indigente, os órgãos de repressão ocultaram os corpos da ditadura. Para ser indigente não é preciso deixar de ter endereço, telefone e RG. Os indigentes quando morrem são levados ao IML local em qualquer grande capital do país e enterrados sem o menor escrúpulo. No caso do Cemitério de Perus, por exemplo, o então prefeito que o inaugurou em março de 1971 ainda queria construir ali um crematório. Paulo Maluf tentou inclusive mudar a lei de cremação em vigor na época. Não havia ainda o Crematório de Vila Alpina, inaugurado poucos anos depois. Se a proeza do prefeito tivesse sido levada a cabo, não teria havido a descoberta das ossadas.
Elas foram um dia os irmãos Dimas e Denis Casemiro, Frederico Eduardo Mayr, Flavio Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira e Grenaldo José da Silva. Os seus restos mortais foram encontrados, com mais 1.044 ossadas embaladas em sacos azuis numa vala de 32 metros de comprimento por três metros de profundidade. A forma da vala indica o instrumento utilizado para abri-la: uma retro-escavadeira. Todas as ossadas haviam sido retiradas de duas quadras do Cemitério Dom Bosco. A Prefeitura explicou posteriormente que aquelas quadras seriam vendidas em concessão. O curioso é que quatro anos após sua inauguração, o cemitério possuía quase todo o seu terreno vazio. De 75 a 76, os sacos plásticos permaneceram na sala do velório local, até que, frustrada a tentativa de mandá-los para o já construído crematório de Vila Alpina, foram soterrados dentro da vala, não registrada nos livros do cemitério. Em 79, familiares começam a localizar pistas sobre o paradeiro dos "desaparecidos".
Quase todos haviam sido enterrados em Perus como indigentes. Mortos com identificação verdadeira nos órgãos de segurança, eles eram fichados no IML com uma letra T (terroristas) e fotografados. Alguns foram enterrados com nomes falsos. Vivendo na clandestinidade, os órgãos de repressão valiam-se de vários nomes utilizados por cada um e enviavam os corpos para o IML. Ali, a versão "oficial" encerrava seu trabalho. O carro do serviço funerário se encarregava de seguir a avenida Dr. Arnaldo, onde está localizado o IML, e tinha acesso fácil e reto até Perus. "O de Vila Formosa - diriam depois funcionários do IML - era mais longe". Esses dois cemitérios, o de Vila Formosa, o maior da América Latina, e o de Perus, têm em comum abrigar a massa da população, os pobres e miseráveis.
Os parentes que procuravam seus mortos não tiveram jamais acesso às informações sobre como aconteciam os fatos. Os que foram assassinados na tortura, as versões eram, em geral, vítimas de atropelamento, outros chegavam a sofrer o tiro de misericórdia ou muitos tiros de misericórdia e o motivo seria então, morto em tiroteio com os órgãos de segurança. Outros, nem isso. Não há qualquer informação a respeito. Além dos 59 mortos da Guerrilha do Araguaia, ainda são 66 os "desaparecidos" brasileiros.
Enterrados em covas normais, foram identificados posteriormente Sonia Maria de Moraes Angel e Antonio Carlos Bicalho Lana. No Cemitério de Campo Grande, em Campo Limpo, bairro da zona Sul de São Paulo, foram localizados Manuel Lisboa de Moura e Emanuel Bezerra dos Santos. Segundo o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos, documento do Comitê Brasileiro pela Anistia, Emanuel teve arrancado seus dedos, umbigo, testículos e pênis.
Sonia Angel foi lembrada anos após seu enterro por coveiros do Dom Bosco. Seu corpo chamou-lhes a atenção porque estava vestido com uma jaqueta. Normalmente, os próprios coveiros confirmavam, os corpos eram enterrados nus. A jaqueta foi objeto de disputa entre os coveiros, diz o livro O Calvário de Sonia Angel. Ela cobria seus seios mutilados na tortura.
Esse processo de "horror" a que foram submetidos os jovens resistentes dos anos 60 e 70 não está explícito no filme Vala Comum. O cineasta optou pela subjetividade dos depoimentos e a agilidade e hipocrisia da propaganda oficial. "Este é um país que vai pra frente, ô,ô,ô,ô, de uma gente amiga e tão contente ... é um país que canta, trabalha e se agiganta", dizia a música animada por bonequinhos na televisão. Era hora de se pensar na ascensão econômica do Brasil grande. A pobreza aumentaria muito mais a partir do "milagre". E aqueles que ainda acreditavam que era importante ter liberdade foram morrendo um a um, outros ficaram na prisão e outros no exílio. Alguns dos companheiros, passado o período macabro, decidiram que era hora de procurar, localizar e resgatar a cidadania daquelas existências.
Em 1990, o repórter Caco Barcelos, da TV Globo, pesquisando a morte violenta em São Paulo, chegou ao Cemitério de Perus e foi informado que ali havia uma vala clandestina onde estavam enterrados alguns "desaparecidos" políticos. No cruzamento de dados surgiram os nomes já localizados pelo mesmo repórter em uma pesquisa no arquivo de IML. O assunto foi oferecido à TV Globo que aceitou a reportagem. Caco Barcelos pediu autorização para gravar a vala sendo aberta por ordem da prefeita Luiza Erundina de Souza e, a partir daí, a Comissão de Familiares e Mortos de Desaparecidos Políticos ganhou respaldo político para acompanhar e encaminhar o processo. A prefeita assinou um convênio com o estado, governado na época por Orestes Quércia, e com a Universidade de Campinas. O objetivo era realizar uma ampla pesquisa no IML e a investigação e identificação das ossadas pelo Departamento de Medicina Legal da Unicamp. O método de identificação utilizaria inclusive a transposição de imagens. A responsabilidade destas identificações coube ao legista Fortunato Badan Palhares, que alguns anos antes reconhecera o cadáver do nazista Mengele. Os ossos foram limpos e catalogados ainda em Perus e posteriormente transladados para a Universidade. Alguns meses depois, Badan Palhares identificava Sonia Angel e Bicalho Lana, localizados em covas normais e Denis Casemiro e Frederico Eduardo Mayr, encontrados na vala. Apesar de nunca ter sido exibido pelo Globo Repórter produzido por Barcelos, a existência da vala repercutiu em toda a grande imprensa.
O episódio provocou a curiosidade e a emoção de muitas pessoas, entre elas João Godoy.
Sua aproximação com os familiares, a revelação do confronto com, dor e a necessidade de se fazer justiça foi desenvolvendo-se num projeto de documentar a "concretização da morte" e o fim de qualquer esperança do reencontro com a vida, relata o cineasta. Ele gravou em fotos e VHS a remoção e catalogação dos ossos e concorreu ao Prêmio Estímulo da Secretaria de Estado da Cultura para a Realização de Curta Metragem. Selecionado, o projeto foi desenvolvido e o filme concluído graças a associação de vários profissionais, já que, a verba do Prêmio não ultrapassou os primeiros meses de trabalho. O filme só foi concluído em novembro de 94. Rodado em 16mm, durante seus 32 minutos, Vala Comum conquista o espectador. Trabalha a emoção e não descarta o humor hipócrita hoje percebido nas locuções de jornais da época. Na semana de sua estréia, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, foi impossível perceber também pela reação de João Godoy, visivelmente emocionado diante dos familiares retratados em seu filme, que uma parte dessa história está registrada. E que saber a morte significa, muitas vezes, o reinício de uma outra vida.
Myrian Luiz Alves é assessora de imprensa da Executiva Nacional do PT.