Estante

Os intelectuais, a verdade e a política - esses três pontos têm lugar de destaque no interior do Iluminismo e se desdobram na valorização da opinião pública e da liberdade de imprensa como garantia da soberania popular.

Esses são também os temas de Milton Meira do Nascimento ao analisar a trajetória de um grupo de intelectuais que no ano 11 da Revolução Francesa (1790) fundou, liderado por Bonneville, Fauchet e Mercier, o Círculo Social. Dentre os inúmeros clubes e associações do período, o Círculo, segundo Meira, foi o único a teorizar sistematicamente sobre o papel dos intelectuais e da opinião pública na busca da verdade.

O pensamento do Círculo Social apropriou-se de idéias de Rousseau, partindo do princípio de que é possível regenerar toda a humanidade através da verdade e de um "pacto social cosmopolita" que possa levar o mundo e os homens de volta ao Estado de Natureza. A revolução, sendo o início desse processo, representaria o primeiro passo para acabar com a tirania e permitir que o reino da verdade revelada ao homem pudesse imperar.

Esta verdade não é visível a qualquer um. Cabe ao intelectual, que tem a capacidade de ver o futuro, mostrar à grande massa como chegar a ela. O intelectual tem, portanto, duplo papel: primeiro, descobrir qual é a verdade inscrita na História; segundo, mostrar ao povo essa verdade e, através do convencimento, torná-la consensual e permitir sua prática. O "intelectual militante" sabe que a verdade só vai imperar quando for absorvida pela "moda", isto é, tornar-se valiosa para a opinião pública.

Milton Meira demonstra como, progressivamente, as noções de opinião pública ganharam o status de serem também racionais. Antes relacionadas à imprecisão e ao engano, passaram a expressar a vontade da maioria. Contar um pouco da história dessa valorização é o principal objetivo do livro. No entanto, para o desenvolvimento do texto, a noção de verdade adquire um caráter tão fundamental que sua definição mais precisa acaba ausente. Com o Iluminismo, a valorização da razão propiciou um otimismo em relação à possibilidade de reordenar a fundo a realidade social. A razão, que no século XVIII passou a ser considerada uma faculdade humana e não um conjunto de idéias inatas, demonstrava que a verdade não era mais a essência de uma coisa, mas a relação entre o intelecto humano e o mundo.

<--break->Para o Círculo Social, a verdade preexiste ao homem e às suas opiniões. A alguns "homens esclarecidos" são dados a possibilidade de descobri-la e o dever de revelá-la. Para isso, eles contam com a palavra e, portanto, têm tudo. Se o homem tem tudo, ele é Deus; Deus é espírito, a Palavra Criadora. O homem do Círculo Social se considera portador do poder divino de chegar à essência das coisas.

Essa postura do Círculo Social perante a religião e a verdade, e suas ligações com a franco-maçonaria o colocaram em oposição ao mais famoso grupo de revolucionários franceses: os jacobinos. Para estes, a ação política é a essência da transformação revolucionária. Para se chegar à verdade, segundo Meira, passava-se por dois momentos contraditórios: um, essencialmente democrático, em que se acreditava que a verdade era construída pelo livre debate das idéias, pela discussão pública; outro, terrivelmente autoritário, quando a vitória de uma das posições em debate eliminava as demais. Para os jacobinos, enfim, a verdade se encontrava na vitória. Os derrotados deviam ser convencidos por ela ou eliminados na guilhotina.

Para o Círculo Social, o debate é importante não por construir uma verdade, mas porque ele a revela aos homens. Eles empregavam a razão para chegar a um objetivo e não para defini-lo conjuntamente. Por isso, a censura acaba sendo admissível - ela garante que a verdade única seja divulgada àquela entidade que também é una: o povo. Aqui, sem a necessidade da guilhotina, a multiplicidade de linguagens, opiniões e crenças de um mesmo povo pode ser reduzida a uma única sentença verdadeira. Como afirma Marilena Chauí em seu prefácio ao livro, "cada vez mais a opinião ruma da qualidade de pública para a de oficial". (p. 17). O Círculo Social coloca-se, assim, para além da política, numa esfera em que a disputa de visões divergentes não leva o povo à verdade.

Na conclusão, Meira recupera de Hanna Arendt a idéia de que a verdade é impotente diante da política. O espaço público representa essencialmente o espaço da divergência, dos conflitos, do embate entre idéias e interesses. A posse de uma verdade de cunho moral, filosófico ou religioso transposta para a política torna-se violência, quer física, quer cultural, e pode deixar a política impotente diante da opressão. Admitir a política e, portanto, o espaço público como o espaço sem a verdade é dar um passo em direção à democracia.

A verdade, a opinião pública e a liberdade de imprensa são temas que permanecem até hoje na pauta dos debates políticos. No interior do PT eles também estão colocados. O livro de Milton Meira ilumina a reflexão sobre essas questões de extrema importância na definição de nosso projeto político.

Elizabeth Lima é socióloga e secretária de redação de Teoria e Debate.