Estante

Vida e Arte - Memórias de Lélia AbramoNão há como fugir da enumeração. Vida e arte, de Lélia Abramo, é um livro de memórias veemente, apaixonado, pessoal, partidário. E tocante. Da lista, o atributo mais importante é o “partidário”, pois, de fato, o texto foi escrito para tomar partido. A grande atriz não buscou ser parcial, não teve em vista auxiliar futuros historiadores à caça de depoimentos isentos. Ao contrário, enfrentou, octogenária, a tarefa de redigir um volume de 270 páginas justamente para narrar sua versão dos fatos que viveu, mostrar seus pontos de vista sobre a vida, a arte, o mundo. E também para acertar suas contas. Fez tudo isso.

Ao ler o volume, o leitor percebe que esse motor, o impulso de Lélia Abramo para narrar a história de uma vida a partir desse ângulo específico, é que deu origem ao livro. Não que ela precisasse fazê-lo. Sua trajetória como atriz e como mulher pública – presidente do Sindicato dos Artistas de São Paulo durante a fase mais repressiva do regime militar, militante petista, candidata a suplente de senadora pelo PT nas eleições de 1982 – seriam suficientes para assegurar o registro de seu nome, com destaque, no quadro da cultura e do sindicalismo brasileiros.

Mas ela quis contar sua história em pessoa. Por intuir, talvez, que nenhum historiador poderia, ao reconstituir essa trajetória, encontrar as palavras precisas, equilibradas, mas carregadas de emoção, que ela encontrou para traçar o quadro de sua incomum trajetória e de sua extraordinária família de intelectuais e artistas. Nenhum pesquisador saberia reconstituir a força muitas vezes trágica de sua evocação da Segunda Guerra Mundial, que ela passou na Itália. Lélia Abramo é veemente, passional, indignada. Mas tem um senso de dignidade, de proporção, digno dos antigos romanos.

Mostra-se de corpo inteiro. Mas nada em sua narrativa toca sequer o terreno pantanoso das minúcias e escatologias pessoais a que a cultura de massas pós-Andy Warhol nos acostumou. Lélia Abramo traça de si mesma e de seu mundo um retrato vivo, pungente, narrado em linguagem direta, objetiva, desadornada. O excesso verbal, o desfilar de adjetivos, também incomodam a memorialista. O texto é sóbrio, e a autora consegue, o que é muito difícil, falar de si, de suas emoções mais íntimas, sem ser indiscreta. Chega ao rigor de ocultar atrás de uma inicial o nome do homem que foi o grande amor de sua juventude. Essa história, aliás, dotada de magnífica carga dramática – a separação foi devida a motivos políticos, pois os apaixonados pertenciam a diferentes partidos de esquerda, e o fim da relação foi decidido pelos superiores do jovem –, é evocada pela atriz com uma sobriedade que a torna ainda mais pungente.

A autora dedica boa parte de livro à família Abramo, composta de artistas, intelectuais, jornalistas, gente que vem deixando uma marca forte, nítida, importante, na cultura brasileira. Lélia relembra a infância e a adolescência, o ambiente na casa paterna, os primeiros contatos com a arte e com a realidade social, que a levam desde muito cedo a se engajar na luta sindical e a tomar partido, o que lhe causará, ao longo da vida, não poucos dissabores.

Em Vida e Arte Lélia consegue o difícil feito de falar desses assuntos com mais objetividade que paixão. Não carrega nas tintas, é boa analista de caráteres e traça perfis vivos dos pais, dos irmãos, dos companheiros de teatro e de sindicalismo sem escorregar na sentimentalidade. A ternura ou a raiva que se percebem nas entrelinhas são intensificadas justamente por serem relegadas a segundo plano. Em suas memórias, a atriz não privilegia os sentimentos, mas os fatos. Não por acaso esteve cercada a vida toda de jornalistas.

Lélia ocupa parte importante do livro com a evocação dos anos que passou na Itália, antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Viajou em 1938, em busca da cura de problemas de saúde que portava desde a infância. Deveria ficar seis meses, mas retornou apenas em 1950. Mais uma vez, a memorialista encontra as palavras exatas para mostrar o que foi vivido, sem exagerar o que por si foi trágico.

Se a vida não tratou Lélia Abramo com doçura, esta enfrentou sem hesitação os desafios. É da raça dos resistentes, uma obstinada. Caso contrário, como explicar sua insistência em aproximar-se do teatro, que cortejou desde a infância e cujo umbral só transpôs quando passava dos 40? É impossível deixar de admirar o ímpeto de sua luta pela conquista de uma expressão artística a que muito cedo se sentia destinada, e que as voltas do destino a impediram persistentemente de atingir.

Ela reserva páginas fascinantes para sua trajetória teatral, dos amadores do Muse Italiche ao profissionalismo. Recorda com detalhes do Teatro de Arena, onde estreou profissionalmente em 1958, aos 47 anos, fazendo o papel de Romana, a mãe do jovem operário que sonha ser burguês em Eles não usam Black Tie. No drama de Gianfrancesco Guarnieri que se tornou estandarte de um novo teatro, mais preocupado com as questões sociais que com o entretenimento da burguesia, Lélia Abramo destacou-se de tal forma que ganhou diversos prêmios, entre eles o mais importante da época, o Saci.

A atriz, ao escrever seu depoimento, não se limita a enumerar o que fez em teatro, cinema, televisão. Enriquece o texto com reflexões sobre o ofício, seu sentido, suas técnicas. Faz observações interessantes sobre processos de trabalho, diferenças entre as várias mídias, conta histórias de bastidores, fala da composição de papéis. Mas não consegue a precisão cronológica do historiador, para sorte do leitor. Pois estabelece um jogo de memória que pula para a frente e para trás, em parênteses que se abrem e fecham à medida que o texto avança. É o caso do hiato em que conta como conheceu Vladimir Herzog em um grupo de teatro amador.

O livro está repleto desses volteios, que resultam em fascinantes desvios da rota principal. A autora dedica o último terço de Vida e arte à sua atuação sindical e à sua ligação com o Partido dos Trabalhadores, de cujo nascimento foi testemunha. Lélia Abramo mostra nas páginas deste livro que tanto como presidente do Sindicato dos Artistas de São Paulo quanto como atriz e como militante do PT (atividade que ela sempre fez questão de separar de sua atuação sindical) teve a mesma consciência da urgência de reformas do papel da arte nessa tarefa.

Não que a atriz faça discursos, não é isso. Mas observa o seu tempo e dá o testemunho de uma luta incessante contra o arbítrio, a violência, a indignidade. Travadas não como um papel auto-engrandecedor, mas por serem necessárias à lutadora como o ar que respira. Ao fechar Vida e arte, com a sabedoria dos velhos iluminados, percebe o óbvio:

“...o impressionante avanço tecnológico e científico do século teria tido resultados mais vantajosos para todos numa sociedade menos injusta, com equilíbrio na distribuição de renda e com maior respeito pelos direitos humanos”.

Sabe que isso não se realizou em seu tempo. Mas espera. Vê a infância que dela se aproxima, os cidadãos do século 21, e deseja que “algo do universo da memória do passado possa ser mantido no coração do ser humano, como inspiração de solidariedadee”. A parte de Lélia Abramo nesse DNA da lembrança está feita. E bem.

Alberto Guzik é jornalista.