Estante

VideologiasQuem estuda televisão no Brasil já conhece os autores da nova coletânea recentemente colocada no mercado pela Boitempo Editorial. Alguns dos melhores ensaios críticos produzidos entre nós sobre a mídia dominante da contemporaneidade têm sido feitos por Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl, há algum tempo. (Quem não conhece os textos pioneiros de Kehl na coleção sobre a cultura dos anos 70, publicada pela Europa, ou O Peixe Morre pela Boca, de Bucci?). Não há, portanto, surpresa quanto à densidade teórica e à qualidade analítica dos textos publicados em Videologias.

O prefácio de Marilena Chaui, a introdução dos próprios autores e a orelha escrita por Vladimir Safatle são sínteses esclarecedoras sobre o fio condutor que une os treze capítulos e o Apêndice do livro. Os capítulos foram produzidos entre 1997 e 2004, alguns dispersos em diferentes publicações, outros escritos anteriormente, mas ainda inéditos e outros escritos especialmente para essa coletânea. Por outro lado, embora reunidos em cinco conjuntos temáticos - As voltas com o Método; A Violência Constitutiva; A Realidade Ficcional; Exibicionismos; e O Espaço Público no Brasil, os capítulos constituem argumentos individualizados, que podem ser lidos independentemente um do outro.

Em Videologias, Bucci e Kehl desenvolvem um complexo argumento que articula teoria social marxista (Marx e alguns frankfurtianos, entre outros) e psicanálise (Freud e Lacan, sobretudo), tendo como referência básica as "Mitologias" de Roland Barthes e a noção de  "espetáculo"introduzida por Guy Debord. Nessa imbricada teia, a televisão aparece como a produtora suprema do imaginário mitológico nas culturas contemporâneas, lugar privilegiado da "videologia, um "trocadilho em aberto, cujo significado se consuma quando contraposto ao significado das mitologias barthianas ou ao significado do termo ideologia" Numa clave aparentemente estruturalista, os autores afirmam que, na modernidade, a televisão tem o poder da influência "porque é o elo que industrializa a confecção do mito e o recoloca na comunidade falante" Ela (a TV) "não manda ninguém fazer o que faz"; apenas (...) "autoriza e legitima práticas de linguagem que se tornam confortáveis e indiscutíveis para a sociedade, pelo efeito da enorme circulação e da constante repetição que ela promove" E acrescentam: "A TV sintetiza o mito".

Mais importante. Para Bucci e Kehl, o que caracteriza o poder que controla a TV é o fato de ele ser mais bem descrito "como o mecanismo de tomada de decisões que permite ao modo de produção capitalista, transubstanciado em espetáculo, a sua reprodução automática. O poder, portanto, é a supremacia do espetáculo (...) sobre todas as atividades humanas". Como conseqüência, "o sujeito, agora entendido como o sujeito que põe em marcha o processo de reprodução do capital e que põe em marcha, também, as institucionalizações necessárias à reprodução do capital, é o próprio capital, agindo como o que se pode chamar de sujeito automático. O capital é o sujeito que sujeita a todos os outros": É dentro dessa complexa trama que as diversas análises contidas no livro são construídas.

Um dos capítulos que destaque especial é o inédito "A história na era de sua reprodutibilidade técnica", de Eugênio Bucci. Tomando como mote um artigo recente do editor-executivo da Central Globo de Jornalismo, que insiste em argumentar que a Rede de Televisão "fez bom jornalismo" na sua cobertura da campanha das Diretas-Já, em 1984/85 - e acusa o próprio Bucci, entre outros, de afirmar o contrário -, o capítulo, além de comprovar que a cobertura de facto "tapeou o telespectador", propõe a seguinte questão: "Estaria em curso um esforço, ainda que não articulado de modo consciente, por meio do qual a Globo, que, no passado, falsificava o presente, procuraria agora, no presente, modificar a memória que guardamos do passado?"

Para responder à pergunta proposta, Bucci recorre inicialmente ao historiador John Vincent, que alerta para os possíveis problemas da pesquisa histórica num mundo que está abolindo o uso do papel e registra os fatos cada vez mais em meios eletrônicos. A nova indagação que se coloca é:como reconstruíra história a partir do momento em que a televisão passou a ser, ela própria, media dora e protagonista da história? Lembrando o célebre texto de Walter Benjamim sobre "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica a reprodutibilidade dos fatos faz com que se perca o caráter único desses mesmos fatos. Vale dizer: "Os fatos se replicam, se perde o original". E continua: "Como tudo precisa se traduzirem imagem para adqui rir a condição de existência, ou se seja, como algo só é considerado existente quando se torna algo visível e, mais que tudo, visível não em qualquer lugar, mas visível na TV, a fabricação pela TV e na TV das imagens de todas as coisas acaba se confundindo com a fabricação da própria realidade".

A seguir Bucci descreve e comenta três episódios recentes da programação da Rede Globo: a entrevista de Luiz Inácio lula da Silva no Fantástico do domingo em que ele venceu as eleições de 2002; o discurso contra a ditadura militar veiculado no "Contagem Regressiva" em 1995 e o lançamento do DVD da série Anos Rebeldes, originalmente exibida em 1992. A análise revela como a televisão traduz os fatos em imagens dramatizadas dentro de uma linguagem e lógica próprias, que descontextualizam e despolitizam os episódios, agora apresentados numa roupagem nova, alheia às verdadeiras circunstâncias em que ocorreram na história. Uma nova história é construída. Bucci conclui que "está em curso um movimento objetivo, mesmo que involuntário, que insiste em lembrar os horrores da ditadura, em tons sentimentais, melodramáticos, e esquecer que ela se estruturou como força ideológica a partir da função exercida pela televisão."

As controvérsias que ressurgiram após a morte de Leonel Brizola em torno da cobertura que a Rede Globo ofereceu das eleições para governador do Rio de Janeiro em 1982 e o lançamento recente do livro sobre os 35 anos do Jornal Nacional (Jornal Nacional - A Notícia Faz História, Projeto Memória das Organizações Globo, 408 p., Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2004), posteriores ao aparecimento de Videologias, reforçam como a construção "televisiva"da história é não só relevante, mas, sobretudo, atual.

O(a) leitor(a) só terá a ganhar com mais essa contribuição de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl sobre a televisão no Brasil. Considerando a centralidade dessa mídia, compreendê-la passou a ser condição para que possamos compreender também o jogo de poder que se desenrola no país.

Venício A. de Lima é sociólogo, jornalista e publicitário, autor de Mídia - Teoria e Política