Estante

Pelas mãos de Linda Rubim, minha mulher, recebo de presente a leitura de Christa Berger, colega de vivências comunicacionais e jornalista. O livro trata de Jurema Finamour. Em diversos trechos da escrita, Christa relembra a potência inscrita no nome Jurema. No país, Jurema é remédio, planta, elemento ritual, emplasto, bebida, personagem mítico de origem indígena e afro, religião tipicamente encontrada no nordeste brasileiro, como estudam Michelle Rodrigues e Roberta Campos. Jurema é entidade poderosa. Christa, atenta e corajosa, decide buscar e desenterrar a escritora. O título do livro é esclarecedor: Jurema Finamour – A jornalista silenciada.

Caso espantoso. Christa começa sua escritura, em página quase inicial (p.11), com uma constatação atroz: “Trabalhei como jornalista e, por mais de três décadas, lecionei em faculdades de comunicação. Nunca ouvi menção a Jurema Finamour” (p.11). A leitura emprestada na adolescência do livro-reportagem, Vais Bem, Fidel de Jurema e os 30 anos de invisibilidade inquietaram Christa. Ela resolve se debruçar sobre o silêncio. Admiro os que fazem a história e são marginalizados/esquecidos por ela. Os sentidos do silêncio, como assinalam autoras como Eni Orlandi, denunciam tramas humanos insólitos ou, na contramão, banais. O silêncio fala com acuidade do humano, demasiadamente humano ou desumano, que habita em todos nós.

Maravilha, Christa aceitar o descomunal desafio dos desígnios do destino. Desvelar o esquecido, quase sem sinais e pistas, mobiliza seu espírito jornalístico, ainda não aposentado, mas agora livre para aventuras, que o jornalismo corporativo teima em negar ao exercício profissional. Ela voa como jornalista, comprometida em interpretar a realidade, que não aceita mais a ilusão positivista, tão reforçada em simplórias salas de aula. Nelas parece possível ocorrer o impossível: reproduzir o fato tal qual ele se deu. Mera ideologia que invade muitos jornalistas, inclusive ditos de esquerda.

Christa faz questão de nos apresentar cuidadosamente quem é a sumida Jurema Finamour.  Ela destina páginas e páginas a mostrar Jurema. Jornalista, entrevistou personalidades marcantes, dentre outros: Chou En Lai (China), Arturo Frondizi (Argentina), Kim Il-Sung (Coréia do Norte), Fidel Castro (Cuba), Sartre e Simone de Beauvoir (França), Roberto Rosselini (Itália), Ana Seghers (Alemanha). Publicou livros-reportagens sobre a URSS (Quatro Semanas na União Soviética – 1953), China (China Sem Muralhas – 1956), Coreia (Coreia Sem Paz – 1958), Cuba (Vais Bem, Fidel– 1962 e Contra Toda Expectativa Cuba Chega Lá – 1994), Amazônia (Bem te vi, Amazônia – 1991), três livros de culinária (1970, 1970 e 1976), um livro de poemas (1938), o romance Precisa-se de Uma Rosa  (1961), um livro sobre Neruda (Pablo e Dom Pablo, 1975) e o livro de memórias, A Mulher Que Virou Bode... (1994).

Jurema criou e dirigiu revista feminina, na qual só mulheres escreviam (1947); coordenou coleção de livros sobre América Latina: realidade e romance (1966); elaborou verbetes para enciclopédias sobre gastronomia (1970 e 1975); escreveu e publicou panfletos sobre Cuba (1993 e 1993) e sobre a radiatividade e a Aids (1993) e traduziu quatro livros (1968, 1969, 1971 e 1973), dentre eles: o marcante  Pedro Páramo de Juan Rulfo e O Utopismo Realista: reflexões sobre o estado de Israel e o espírito judeu de Itzhak Harkavi. Ela foi viajante, feminista e cozinheira de mão cheia, como anota Christa na página 15.

Seus livros foram prefaciados por nomes como Jorge Amado, Lourival Fontes, Nelson Werneck Sodré, Leonel Brizola, Antonio Houaiss, Rachel de Queiroz e Barbosa Lima Sobrinho. Conviveu, dentre outros e outras, com Gabriela Mistral, Jorge Amado, Zélia Gattai, Pablo Neruda, Cassiano Ricardo, Anita Leocádia, Carlos Drummond de Andrade, Josué de Castro, Graciliano e Heloisa Ramos, Carlos Marighella, Letelba Rodrigues de Britto, um dos advogados de Prestes, seu companheiro de 1949 a 1962.

De modo não linear, Christa nos oferece, em detalhes possíveis, as muitas faces de Jurema. Lembrei Mário de Andrade, que escreveu que era trezentos. Jurema chega perto. Os trezentos de Mário lhe deram glória. Os trezentos de Jurema não interditaram seu silenciamento. Ela conquistou notável visibilidade, em uma sociedade altamente ocultadora de mulheres, como o Brasil e o mundo dos anos 1940, 1950 e parte dos 1960. A autora lembra que Jurema foi a primeira presa política em alguns lugares do Rio Grande do Sul e em Porto Alegre (p.194), em uma demonstração da limitada periculosidade atribuída às mulheres na cena política. Mesmo os partidos de esquerda, até os anos 1960, possuem pouca presença feminina em lugares mais visíveis e de maior liderança.

O espanto inicial se torna ainda maior. Ao mergulhar na história, Christa remove trapos patriarcais e descobre uma mulher ativa, moderna, com traços bonitos, sensíveis, intelectuais e políticos, de excepcional vida e vivacidade, para sua época anterior ao feminismo aberto. Ela havia conquistado lugar de destaque na sociedade brasileira e mesmo internacional. O drama só faz aumentar: como a visibilidade conquistada, sempre por caminhos difíceis no caso das mulheres, será bloqueada, interrompida e calada?

O machismo imperante no Brasil, no mundo e inclusive nas esquerdas não resta dúvida tem peso vital para o apagamento. Christa percebe e afirma o machismo silenciador, mas procura o episódio mônada, sintetizador do processo de silenciamento. Ela dá destaque ao franco livro de Jurema sobre Neruda, Pablo e Dom Pablo. O Pablo que a encantou com sua figura, poesia, sorriso e gigante presença e o Don Pablo, que conheceu como secretaria nos anos 1940 nas famosas casas chilenas de Neruda. Ela ficou decepcionada com os horrores vividos. Christa, politicamente perspicaz, anota que o “livro não poderia ter aparecido em pior hora... Em 1975, o mundo ainda lamentava a morte de Neruda” (p.220). Morte de Neruda suspeita depois da trágica morte de Salvador Allende e do assassinato do sonho de um socialismo por via democrática, no Chile de 1973, pela truculência de Pinochet e das classes dominantes chilenas, com o aval do império e das ditaduras latino-americanas, inclusive da brasileira.

Concordo, com o momento delicado. Instante talvez impróprio para desmistificar mitos, como o de Neruda, construído por sua história pessoal, por sua literatura, por sua relação com o povo de seu país e por relevantes instituições culturais comunistas mundo afora. Instante sensível e propicio para atiçar machismos enraizados e silêncios produzidos. Nada casual que Jaguar tenha, no Pasquim, nomeado “Jurema Pinochet” e na edição seguinte escrito, em suposta errata: “leia-se Jurema Finochet” (p.261). Na guerra cultural, para usar uma expressão própria da extrema-direita atual e pertinente no caso, tudo vale por uma graça sem graça, que busca massacrar com crueldade, destruir o adversário tornado inimigo, olvidando toda a vida de esquerda de Jurema.

Christa demonstra como a repercussão contrária ao livro e à autora foi brutal e violenta. Poucas foram as defesas. A sociedade brasileira em 1975 não estava madura para avaliar atitudes, contrastes e dissonâncias entre o âmbito da vida na casa e no mundo público, em especial de celebridades. Algumas delas iam parar embaixo de luxuosos tapetes. Afirmativas e insinuações agrediram Jurema. As defesas, recuperadas pelo trabalho investigativo de Christa, são poucas e pálidas. Algumas mais interessadas em embates ideológicos maiores, que na efetiva defesa de Jurema. Rachel de Queiroz, por exemplo, aproveita a oportunidade para desancar o “poeta dos pobres” e acusar Neruda de “constante menestrel do estalinismo” (p.260).

Pena que, em ambiente tão doloroso, Jurema tenha considerado as palavras de Hélio Pellegrino como “tolas” (p.266). Penso diferente. No ringue, Hélio tenta psicanalisar a situação. Ele escreve sobre o livro: “Ele é polêmico, provocativo, iconoclasta, e vem encharcado de um soluço, de um mugido de dor humana, que o torna respeitável”. Ele assinala que em alguns trechos pode se notar, inconsciente, algo com possibilidade de suscitar escândalo promocional, mas crê que o livro é sincero e que “é preciso dizer a verdade sobre as pessoas” (p.255). Para não citar em demasia o texto de Hélio, cabe apenas recordar mais uma de suas sutis interpretações. Ele acredita que o mais importante não é a verdade ou o erro sobre Neruda, mas “a crueza e a coragem com que ela [Jurema] se expõe, expondo sua verdade” (p.256). Boa vontade de entender a complexidade, as contradições e os paradoxos das atitudes humanas em circunstâncias plenas de tensões.

Creio que Christa herda coragem de Jurema ao se debruçar sobre história tão fascinante, tenebrosa e cheia de mistérios. O desencadeador está reconhecido: Pablo e Dom Pablo e suas repercussões. Ele desencadeia a dor. Christa conclui que “Jurema não se arrependeu de ter publicado o livro” (p.266) e pouco depois escreve: “No Brasil, o silêncio do livro Pablo e Dom Pablo aos poucos se estendeu à sua obra, e, lentamente, também, à jornalista e escritora Jurema Finamour” (p.269). O episódio desencadeador mobiliza silenciamentos estruturais e conjunturais. Eles são produzidos por múltiplos processos coletivos, mas sempre cruéis.

A tese da autora merece respeito. Ela mobiliza circunstâncias e culturas profundamente arraigadas na sociedade brasileira. Tendo a concordar com elas, autora e tese. Com ousadia, gostaria de aduzir algumas complementariedades que podem colaborar no entendimento de trajetórias humanas.

O contexto de polarização ampliada da Guerra Fria, exacerbando clima de ódio entre blocos e grupos humanos, juntamente com as opções políticas assumidas pelo Partido Comunista de imaginar a revolução iminente no Brasil nos anos 1950, criaram imensa polarização e conflitos entre pessoas do meio cultural. Os violentos embates pelo controle da Associação Brasileira de Escritores, nos anos 1940 e 1950, que anoto em minha tese de doutorado, intitulada Partido Comunista, cultura e política cultural, servem de contexto para entender melhor os conflitos entre Neruda e Fernando Sabino, assinalados no livro. Aquilo aparentemente pessoal está sobredeterminado – para utilizar uma noção de um autor que não admiro, Althusser – pelo contexto em que o acolhe. Jorge Amado, em Navegação de Cabotagem, cita episódio em que o escritor Dalcídio Jurandir, doce e tranquilo conforme Amado, passa a ser odiado por ter que assumir duras posições do partido frente aos intelectuais. Climas de época, fundamentais para compreender as pessoas e suas atitudes.

Outro dado contextual, que penso relevante, o movimento comunista desenvolveu internacionalmente vigorosa solidariedade entre militantes, inclusive intelectuais próximos, desde que não questionassem as orientações dos dirigentes. Jurema, enquanto nas redondezas do partido, ela nunca foi filiada, pode se utilizar do aparato, quando perseguida pela repressão contra os comunistas, algo bastante comum naqueles anos. Mas a separação do companheiro em 1962 e, em especial, a admiração por Cuba e Fidel revolucionários, naqueles anos distantes da URSS, devem ter abrandado a solidariedade. Não me parece casual, nem mera rivalidade, que Ana Montenegro, militante comunista, tenha levado o Partido Comunista alemão a retirar o apoio solidário à Jurema no exílio, logo depois do golpe de 1964, argumentando que ela não era filiada ao partido brasileiro (p.184).

Imagino que as tensões existentes entre a China e a URSS, crescentes nos anos 1950 até sua ruptura, bem como os problemas em processo entre a Coreia e a URSS, nos anos 1950 e 1960, igualmente possam ter pesado no afastamento de Jurema do em torno do Partido Comunista, no qual convivia. As leituras bastante favoráveis de Jurema da China, da Correia e de Cuba, quando esses países viviam momentos de tensões e visões dissonantes da ortodoxia soviética, prevalecentes no Partido Comunista no Brasil, então hegemônico na esquerda brasileira, podem colaborar no afastamento e silenciamento de Jurema. A aproximação de Cuba com a URSS no final dos 1960 e início dos 1970 também pode ser considerado como dado para iluminar as aproximações e os distanciamentos entre pessoas, comunidades e partidos. As razões políticas não abrandam em nada a crueldade do apagamento, por vezes o agigantam.

O livro de Christa, felizmente, faz parte da refundação da história, em curso no Brasil e no mundo, apesar dos eventuais retrocessos como o que vivemos há pouco no país. A história, cada vez mais, deixa de ser um monolito produto do homem branco e passa a encarar a diversidade de vidas e vozes que fazem a história. São mulheres, negros, indígenas, comunidades LGBTQIA+, oprimidos e discriminados saindo do gigantesco silenciamento imposto e colocando em cena suas alegrias e dores, derrotas e conquistas, enfim suas vidas. Depois da monocultura, autoritária e excludente, podemos ter outras histórias bem mais complexas, densas e interessantes.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA)