Estante

É um tanto incômodo resenhar Zola, de Henri Troyat: o livro mais parece uma resenha da vida e obra de Émile Zola do que uma biografia. Troyat levanta inúmeros dados, quase tudo vem à tona, mas "lava as mãos" depressa demais, abstém-se de uma interpretação crítica mais contundente.

Isso pode parecer impreciso aos velhos leitores de Zola que lerem o livro de Troyat. E por que "velhos leitores"? Porque hoje pouca gente lê o autor de Nana e os que leram, muito provavelmente, o fizeram há alguns anos. Émile Zola é o tipo do escritor que já não se fabrica mais...

Émile Zola chegou ao Brasil quando este país e quase toda sua intelectualidade sofria a influência cultural francesa. Vinha do século passado, marcava-se por uma presença heróica na luta contra as injustiças. Zola formou a consciência de uma época. Como escritor, quebrou barreiras de estilo e introduziu temas malditos na literatura francesa. Como intelectual engajado - ainda existe? -, colocou-se à frente, muitas vezes solitariamente, na luta contra as injustiças do sistema: nas artes, no comportamento, na política. Sua extraordinária ação coroou-se com a defesa de Dreyfus, injustamente acusado de traidor pelo Estado francês.

Eu Acuso é sem dúvida o mais digno libelo pela liberdade e justiça no século XIX. Zola foi o escritor que enfrentou a França bem pensante, teve um raio apoio de alguns intelectuais que não temeram a repressão, e acabou isolado, perseguido, expulso do país, execrado como um traidor ainda pior do que Dreyfus.

Impossível dissociar Zola do caso Dreyfus. Como é impossível separar da consciência dos seus leitores o impacto de solidariedade humana e denúncia social que emanam das páginas de Germinal. Quem, adolescente ainda, lendo o Germinal, não molhou suas páginas com as lágrimas do amor e da revolta? Quantos não se deixaram marcar - para sempre! - por um forte espírito de revolta e luta após a leitura de Germinal?

Pois Zola, que rompeu com o machismo da escrita, que enfrentou a ira dos acadêmicos, introduzindo uma temática maldita na literatura do seu tempo - e isso não quer dizer que ela não existia, mas ganhou dimensão com ele -, além disso, foi defensor de uma nova estética nas artes plásticas, valorizando pintores como Manet e seu amigo Cézanne, com quem teve uma relação tempestuosa.

É claro que Troyat fala disso tudo e muito mais. Mas...

Mas Zola, justamente enaltecido por ensinar a várias gerações a dignidade da luta pela justiça; este Zola que nos falta hoje, pois o que temos é uma literatura pálida, construída de maneirismos, escapista e pretensiosa, Zola também tem outro lado. O lado que Troyat sequer arranha, embora tímida e rapidamente o informe. Não se trata, como alguns podem pensar, da sua rendição intelectual, ao aceitar as glórias e honras da Academia francesa. Não é isso.

É possível escrever uma biografia de Émile Zola destacando-se a sua grandeza quando enfrentou o poder. É necessário, aliás, destacar que foram poucos e hoje praticamente inexistem, os escritores que deram à literatura uma dimensão de humanidade como Zola conseguiu algumas vezes. Mas também, é preciso lembrar que ele, com o seu naturalismo equivocado, aplicava nos seus romances conceitos absurdos de hereditariedade, construindo personagens determinados a um certo comportamento porque assim os induziam seus genes.

Também pode-se admirar Zola mesmo criticando a prolixidade em algumas obras e a pressa comercial em outras. E como para quase todos os escritores, é preciso uma seleção crítica da sua obra. Nem tudo o que ele escreveu vale a pena ser lido hoje. Só como exemplo, podemos lembrar que pelo menos um terço - talvez metade - do que escreveram Flaubert e Machado de Assis (dois gênios da literatura mundial) não se equipara ao que melhor produziram.

No caso de Zola, porque é tão "conhecido" porém não lido, isso é mais importante. Do contrário, os leitores jovens dessa época de literatura de consumo, acostumados a rotular o que é bom de "moderno", pela falta dessa visão crítica, perderão a oportunidade de aproveitar o velho Émile.

Troyat, famoso por algumas biografias, foi muito oficial. Parece que recebeu a incumbência de biografar o mito, com profissionalismo, mas sem perturbar a sua imagem. Os velhos conhecidos de Zola, aceitando ou não as limitações do biógrafo, não sairão frustrados da leitura desse livro. Mas os novos, mesmo que não percebam a necessidade de uma crítica biográfica mais profunda, perderão a oportunidade de um Zola literato melhor situado no tempo e no espaço.

Mas Zola e Zola devem ser lidos. A propósito, é um detalhe tão insignificante para os franceses, que Troyat não conta, Émile Zola foi correspondente - daquele outro lado do Atlântico - da Academia Brasileira de Letras... Outro a propósito: mesmo o bom-mocismo de Troyat fala sobre algumas acusações de plágio contra Zola. Uma delas teve muito a ver com a literatura portuguesa: La Faute de L'abbé Mouret é muito parecido com O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Aliás, quando o livro de Zola chegou a Portugal, os inimigos de Eça, que não eram poucos, acusaram-no de ter plagiado Zola. Mas o livro de Eça foi publicado dois anos antes que o de Zola.

Julio José Chiavenato é escritor.