Política

Desperdiçou-se, no 1° Congresso, uma boa chance de aprofundar a reflexão sobre um projeto alternativo para o Brasil. Ainda assim, foram muitos os pontos positivos. Entre eles, os passos decisivos para caracterizar o PT como partido de massas e a derrota daqueles que insistem em construir barricadas em suas fronteiras

Quem se deu ao trabalho de ler tudo o que foi escrito na imprensa partidária sobre o 1° Congresso acabará por concluir que, com exceção da Convergência Socialista, de O Trabalho e da Tendência Marxista, todas as outras tendências foram "vitoriosas". Na verdade, os mais desavisados poderiam pensar que o Congresso agradou a 85% dos seus delegados porque apenas aquelas três correntes se assumiram como derrotadas. Se o Congresso não foi exatamente um festival de unidade e concordância, os 85% que se reivindicam vitoriosos sofreram derrotas em diversos pontos e conquistaram vitórias em outros. Feitas as contas, o resultado do Congresso permanece como objeto de uma disputa inacabada. A batalha da sua repercussão e dos seus desdobramentos está em curso.

Debate doutrinário

O processo de preparação do Congresso foi marcado por uma polarização doutrinária sobre o socialismo e concepções de estratégia, estimulada particularmente por companheiros que posteriormente se agruparam no Projeto para o Brasil (PPB) e Tese 10. A falência dos modelos do "socialismo real" contribuiu para impulsionar essa discussão, promovida por esses setores que, órfãos ou herdeiros do leninismo mais ortodoxo, se enfrentaram em um debate particular, coerente e necessário para eles em função do seu passado, porém estranho à tradição majoritária do PT. Um setor inspirado na insegurança face às novas realidades, no apego ao passado, no refúgio na tradição marxista, no conservadorismo. Outro movido pela busca do rompimento com o passado, o acerto de contas com a história, a ansiedade revisionista. No meio, um PT perplexo, atônito, cuja maioria de filiados não conseguia acompanhar o debate. Apesar deste problema existir há muito, nunca foi eficazmente enfrentado. Talvez por termos realizado o nosso Congresso em um ano de refluxo, com um forte esvaziamento do partido e, conseqüentemente, com um sobrepeso da sua parcela mais militante. Talvez porque a Articulação não tenha sabido dar conseqüência à orientação de junho de 91 de inversão do curso do Congresso, trazendo-o de volta à política.

A Articulação, como corrente majoritária e por ter sido a fiadora por toda a década passada do método de construção do partido a partir da política e não da doutrina - fazendo com que o PT nascesse, na prática, rompido com a tradição leninista -, sofreu nessa questão a sua maior derrota no Congresso.

O Congresso propriamente dito teve na Democracia Socialista, no PPB e na Articulação seus principais atores. Apesar da Tese 10 ter sido a segunda mais votada, suas contradições internas impediram que tivesse um papel mais importante no curso dos debates.

Tanto a DS como o PPB tinham como objetivo, excluindo-se entre si, compor um campo hegemônico com a Articulação. Ambas as tendências - e não apenas a DS como afirma Augusto de Franco em seu artigo em Teoria & Debate n° 17 - aspiravam à condição de "conselheiras da maioria". O PPB de forma muito mais explícita e agressiva. Sua decisão de inscrever tese própria só foi tomada depois que ficou claro que a maioria da Articulação rejeitava a idéia de constituir um bloco comum com tese unificada.

Para o PPB tratava-se de criar uma polarização entre "ortodoxos" e "heterodoxos" e particularmente eliminar a influência no partido da "ortodoxia mais perigosa porque mais flexível", representada pela DS. Estes pretendiam isolar a "direita", expressa no PPB e garantir para o PT um "rumo revolucionário". A partir de alinhamentos variados em votações distintas nos encontros estaduais e no I Congresso, DS e PPB reivindicaram para o seu campo de alianças uma "maioria da Articulação" (João Machado, Em tempo nº 256, e Augusto de Franco, Teoria & Debate). Na verdade, ambos incorreram no erro de reduzir a pluralidade internada Articulação aos seus próprios interesses, apostando na divisão entre "direita e esquerda" ou "ortodoxia e heterodoxia".

Augusto de Franco insiste na tese da dissolução da Articulação. Sua idéia é compor com um setor desta corrente e o PPB um campo "heterodoxo", uma "nova maioria". Se essa lógica tivesse sido incorporada estaríamos, onze anos depois, paradoxalmente, capitulando diante de aspectos da concepção leninista de partido, onde a construção de um corpo doutrinário se sobrepõe à lógica da construção do partido através da política.

Ditadura do proletariado

A polêmica da ditadura do proletariado talvez tenha sido a questão mais exemplar da disposição de setores do PPB de levar o PT a expiar uma culpa... deles. A tese base fazia crítica contundente às experiências históricas de construção do socialismo baseadas na concepção de ditadura do proletariado. Mas, para quem tinha a pretensão de acertar contas particulares com o passado, bem como dividir o partido em torno de polêmicas doutrinárias, isso era pouco. Derrotados em seu objetivo no Encontro Estadual de São Paulo, iniciaram uma verdadeira chantagem pelas páginas da grande imprensa, acusando o PT de, ao não aprovar a sua emenda sobre a questão, estar aceitando, na prática, o
conceito de ditadura do proletariado. Apesar do método reprovável ou, paradoxalmente, por causa dele, a intenção foi em boa parte atingida. Responsavelmente, a Articulação assumiu uma emenda que não era a original mas dava ao PPB uma saída honrosa, evitando dessa forma a continuidade das repercussões negativas construídas pelo artigo de Genoino e Eduardo Jorge na Folha de S. Paulo.

O sentimento generalizado na base da Articulação, ao ter se sujeitado a uma resolução fruto de chantagem, manifestou-se na votação seguinte através da rejeição de uma emenda essencialmente correta sobre a violência, pelo simples fato de ter sido apresentada pelo PPB. Trabalhando com as categorias "denotativo" e "conotativo", tão caras a Augusto de Franco, pode-se dizer que esta foi a única votação onde o caráter denotativo prevaleceu.

Direito de tendência

A emenda, conhecida como emenda 23, que se refere à nova regulamentação do direito de tendência, constitui-se no fato mais marcante do Congresso. Surgiu a partir da necessidade, identificada pela própria Articulação - que a elaborou -, de melhorar e desenvolver a questão, insuficiente e superficialmente, tratada na tese guia. Foi objeto de negociação com a Força Socialista, a Democracia Socialista e o Projeto para o Brasil, que terminou rompendo por duas vezes o acordo, apesar de ter incorporado à emenda adendos de sua responsabilidade. A franqueza de Augusto nos ajuda a entender a razão do PPB ter votado contra a emenda apesar de, através de dois destacados representantes, ter concordado com ela. Augusto de Franco reconhece em seu artigo, assim como já havia reconhecido em matéria publicada no Boletim Nacional logo após o Congresso, que o problema não era a emenda. E não poderia ser diferente, pois todas as sugestões feitas pelos que articulam a oposição à emenda foram incorporadas ao seu texto. Na verdade, o problema era o arco de sustentação da emenda 23. Para a lógica do PPB era inaceitável votar uma resolução desta importância junto com a DS, ainda que houvesse concordância com o texto. O caráter denotativo, simbólico, atribuído por Augusto de Franco a essa votação, revela um procedimento tortuoso e nada moderno de fazer política, caracterizado também pelo pouco compromisso com o acerto de resoluções dessa importância. A nova ética que precisamos construir nas nossas relações deve nos levar a prescindir de semelhantes métodos. A responsabilidade que temos com os rumos do PT, nos obriga a desenvolver com o máximo de rigor as suas resoluções. Através delas estaremos definindo a nossa própria legalidade.

O que sai do 1º Congresso?

Todo o intenso e extenso debate sobre socialismo e estratégia não nos trouxe qualquer avanço substantivo sobre a elaboração já acumulada pelo PT a partir do 5° Encontro Nacional. Talvez a principal novidade seja que, diante da crise que atravessa toda a esquerda da América Latina e do mundo, o PT se mantém no campo daqueles que acreditam ser possível e necessário superar o capitalismo, reafirmando a vontade de construir uma sociedade socialista, fraterna e libertária. Isto, nos tempos que correm, talvez seja uma grande novidade.

Temos a lamentar o fato de o PT haver desperdiçado boa oportunidade de aprofundar sua reflexão sobre o projeto alternativo para o Brasil, de discutir as experiências petistas de governo. Enfim, questões absolutamente necessárias para dar conta dos desafios que temos pela frente.

O PT sai do 1° Congresso com uma nova estrutura orgânica, bastante distinta do modelo dos seus primeiros doze anos. No terreno da construção partidária, novos e decisivos passos foram dados no sentido de caracterizar o PT como partido de massas, capaz de apreender, elaborar e disputar política no seio da sociedade.

Radicalizamos a democracia partidária, ampliando e regulamentando os mecanismos de representação direta da base nos encontros de nível superior e nas instâncias de direção.

Consolidou-se a idéia de núcleos como espaço de respiro entre a base orgânica e a base social. Abriu-se a participação neles aos não-filiados e foram consolidados canais de representação dos movimentos sociais, que passam a participar sem perder sua identidade de área de atuação.

O PT sai, portanto, melhor capacitado a disputar a direção e a hegemonia em todos os espaços da sociedade.

A nova regulamentação consolida a idéia de um partido com permanente liberdade de organização de tendências, porém sem que nenhuma delas possa se firmar como permanente. É mais um passo nos sentido do distensionamento das relações internas no partido.

Outro momento importante foi a afirmação da necessidade de unificação da ação dos petistas nos movimentos sociais, em particular no movimento sindical. Como desdobramento, o PT deverá iniciar um processo visando a superação das atuais frações sindicais, construindo uma única corrente sindical, mais ampla que o partido, mas que contemple todos os petistas.

Os desafios continuam. Não é fácil construir um partido de massas preservando a necessidade de ter uma parcela militante. Um partido que rejeita o dirigismo, o atrelamento, a correia de transmissão dos movimentos sociais à sua política, mas que, democraticamente, se alimenta da elaboração desses movimentos e busca disputar posições e propostas políticas junto a eles.

Do 1° Congresso sai um partido consciente da dimensão da sua base social, empenhado em reforçar mecanismos de incorporação dessa base social à base orgânica, mas que se recusa a diluir suas fronteiras.

Saem derrotadas a visão daqueles que insistem em construir barricadas nas fronteiras do partido, dificultando a entrada e transformando o PT num partido de "poucos, pero muy sectários", bem como a visão dos que querem diluir as fronteiras do PT, abrindo mão na prática, da necessidade de existência de partido como instrumento de ação de uma parte na luta política.

José Luís Fevereiro é economista e membro da Comissão Dirigente Estadual/RJ, do Diretório Nacional e da Coordenação Nacional da Articulação