Política

Tudo indica que o PT viverá uma longa batalha interna, não mais entre revolucionários e os reformistas, mas entre socialistas e "melhoristas"

Em artigo publicado pela T&D 26, o professor Mangabeira Unger propôs ao PT "cultivar lideranças nacionais que não se enquadrem em nenhuma das duas categorias seguintes: a esquerda de que a direita gosta ('modernos', linguagem vaga social-democrata, gosto pelo parlamentarismo e outras causas do udenismo de esquerda); a esquerda de que a esquerda gosta (caretas, estatistas que perderam a fé no Estado, políticos estudantis envelhecidos)". E conclui dizendo ser necessário procurar "a esquerda de que o povão e os assalariados possam gostar".

As opiniões do professor Mangabeira provocaram certo rebuliço no PT, e várias manifestações de simpatia. Nada mais natural: o resultado eleitoral mostrou que, apesar do crescimento, o PT continua sendo pouco votado entre os excluídos. Pior ainda: o alto índice de brancos, nulos e abstenções, além do desempenho eleitoral da ultra-direita, mostram que o PT está deixando de ser uma opção para "quem está contra tudo isto que está aí. Fatos como a contribuição das empreiteiras et caterva às campanhas petistas apenas parecem confirmar, aos olhos de muita gente, que o PT virou parte do status quo. Até os financiadores seriam os mesmos...

Os cínicos acham essa situação inevitável: um preço a pagar pelo peso cada vez maior do partido na institucionalidade. Alguns avisam querer mais: que o partido deixe de lado o socialismo ("morto-vivo", segundo gente que gosta de cuspir para cima) e assuma-se social-democrata ("de esquerda", acrescentam, numa piada involuntária).

Os descontentes com a situação declaram aberta a guerra santa em defesa dos princípios e do socialismo - esta gente que abandonou a luta por uma sociedade alternativa ao capitalismo, em nome de "reformas" cada vez mais parecidas com as propostas pelos neoliberais.

É cedo para saber quem vencerá. Mas os socialistas do PT perderão caso não consigam fazer, da sua defesa do socialismo, a defesa dos pobres, da democracia e dos interesses nacionais. Caso não consigam somar forças com aqueles que, dentro e fora do PT, opõem-se de maneira decidida ao neoliberalismo. Caso não levem em conta sugestões como as de Mangabeira Unger.

Mas antes que a intranqüilidade tome conta dos petistas mais patriotas (como é possível dar tanto cartaz para um pedetista?), lembramos que a busca de "uma esquerda de que o povo goste" tem um paladino dentro do PT: o professor Cristovam Buarque, ex-reitor da UnB e agora governador do Distrito Federal.

Segundo Cristovam, a esquerda brasileira tem uma maneira de ver o país muito semelhante à da elite. E mais: os partidos populares não representam (ainda) os interesses da maioria marginalizada do povo, mas sim de um setor da elite, composta por parte dos trabalhadores assalariados e pela chamada classe média.

O Brasil tem 120 milhões de pobres; destes, 53 milhões em nível de miséria, dos quais 20 milhões apenas vegetam na mais absoluta indigência. Nesse total, 25 milhões de crianças estão em condições de abandono total ou semiabandono forçado pela pobreza das famílias. Cerca de 70 milhões de habitantes sofrem de desnutrição em diferentes graus, dos quais 30 milhões devem atingir níveis graves que caracterizam fome endêmica. Mesmo em um estado como São Paulo, 25,9% das crianças são subnutridas. Mesmo assim, amplos setores da esquerda se deixam seduzir por uma idéia de modernidade que prioriza não o social, mas o econômico, não o coletivo, mas o individual, não o público, mas o privado.

No Brasil, a classe média e os trabalhadores assalariados possuem muito pouco, quando comparados à burguesia. Mas possuem muito, quando comparados aos marginalizados. E os que possuem, possuem graças ao sistema que concentra riqueza. É por isso que a burguesia encontra tanta facilidade para cooptar política e ideologicamente intelectuais e militantes de esquerda.

Cristovam considera que o maior êxito da direita brasileira foi ter atraído a esquerda para a sua agenda, para o debate dos seus temas, para o seu cronograma de curto prazo, para sua lógica economicista e, ainda mais, para dentro de seu grupo de privilégios, no sistema de segregação social implantado nas últimas décadas.

Para ele, algo está errado em uma esquerda que tem proposta para os trabalhadores organizados, alguns deles com benefícios superiores aos que existem nos países-com-maioria-rica, mas não tem proposta nem discurso para 60 milhões de miseráveis, ignora milhões de micro-empresários, como comerciantes, ambulantes, pequenos proprietários rurais, proprietários de táxi, que trabalham de doze a catorze horas por dia, sem quaisquer direitos.

Na opinião de Cristovam, o que parece ter acontecido no Brasil, como em outros países, é que as forças progressistas restringiram suas alternativas aos limites do sistema econômico implantado. E esse sistema exclui necessariamente a maioria. O PT escolheu ser de esquerda, mas no Brasil moderno, sem fazer uma clara opção pelos setores marginalizados que compõem a imensa maioria do povo. Concentra sua proposta na luta salarial, esquecendo que a maioria da população não tem emprego fixo. Torna-se sindical, ignorando que os sindicatos representam apenas uma pequena parte da população e nem sempre os mais pobres. A esquerda ficou prisioneira do próprio sistema que ela diz enfrentar.

Em seus livros (ver box abaixo), Cristovam ataca a "modernidade das elites" e acusa a esquerda de ser conivente com o sistema social existente no Brasil, responsável pela marginalização da maioria da população brasileira. Como exemplo, o acordo entre os metalúrgicos de São Bernardo e as montadoras: "o Sindicato aceitou, para manter os empregos, reduzir os impostos na venda de automóveis. O que é uma medida claramente concentradora de renda. Diminuir impostos para dá-los aos compradores de carros, às montadoras e aos trabalhadores do setor metalúrgico. Muitos sindicatos lutam para que cada empresa tenha o seu seguro de saúde. Já não estão mais lutando pela saúde coletiva. Mas sim para que o Banco Central, a Caixa Econômica Federal, as universidades, a Votorantim garantam o seguro privado dos seus trabalhadores. Isto é um apartheid. Porque quem for trabalhador dentro da modernidade está bem, mas quem estiver excluído está mal".

Cristovam previa, em 1993, que os sindicatos brasileiros iriam todos para a direita nos próximos anos. "Para defender seus interesses, eles vão direitizar-se. Mas são os partidos que têm que defender as utopias, não os sindicatos. Estes tem que defender os interesses da sua categoria, e não do Brasil".

Há cem anos a economia brasileira vem crescendo. Um século de êxito no caminho do progresso foram cem anos de agravamento da miséria e de enfraquecimento do tecido social brasileiro. Passados cem anos, a modernização se apresenta como uma fábrica de miséria. O caminho da modernização não levou à utopia prometida, desejada e possível. Mas, ao lado do incremento da miséria, a modernização do Brasil produziu um enorme incremento do potencial nacional para construir esta utopia possível.

O Brasil não pode fugir à sua vinculação com a realidade ocidental de um mundo em transformação. Mas duas opções se apresentam no caminho das mudanças para seu futuro: uma modernização com a sociedade dividida em padrões tecnológicos e sociais diferenciados, ou a modernização que inclua a aspiração democrática de uma sociedade única, integrada em um mesmo padrão tecnológico e social.

Para que isso ocorra, Cristovam Buarque propõe "modernizar a própria modernidade: o conceito de moderno não pode se aplicar à sociedade aleijada, construída pela engenharia dos ministros e tecnocratas da área econômica e pelo empresariado selvagem, que controlaram o poder civil e manipularam o poder militar, para servir a uma elite minoritária. A palavra deve voltar à sua conceituação substantiva de significar aquilo que corresponde ao futuro, desmascarando o modernismo arcaico que caracteriza o atraso social do Brasil. O objetivo inicial da modernização deve ser o fim da exclusão da maioria, com a solução de todos os problemas sociais que caracterizam a pobreza do país".

Mas a esquerda só vai contribuir nesse sentido caso rompa com a visão "economicista" que mede o progresso e a modernidade pelos seus meios, e não por suas finalidades. Se compreender que o desenvolvimento brasileiro criou um apartheid social que não é superável através da distribuição da renda, mas somente por meio de profundas reformas, que subordinem a economia a objetivos sociais. E que, inclusive, assumam o ônus de reduzir o nível de consumo de uma minoria (que inclui as classes médias e parte dos assalariados), para melhorar o nível de vida de todos.

Enquanto a esquerda não operar estas mudanças, ela continuará parceira do sistema, prisioneira do corporativismo, uma esquerda de classe média, vista pelo povo como parte da elite.

E que (com o perdão da palavra) Deus proteja Cristovam Buarque, para que suas idéias sobrevivam ao seu mandato de governador no Distrito Federal.

Tetralogia de Buarque

A tetralogia de Cristovam Buarque é composta por A Desordem do Progresso (o fim da era dos economistas e a construção do futuro); O Colapso da Modernidade Brasileira (e uma proposta alternativa); A Revolução na Esquerda e a Invenção do Brasil; A Revolução nas Prioridades: da modernidade técnica à modernidade ética.

A Desordem do Progresso se concentra na crítica ao conteúdo conservador e elitista das idéias da moda: a modernidade, o progresso, a ética, a ciência. è um libelo acusatório contra o modo de pensar predominantemente entre os economistas brasileiros (inclusive os de esquerda).

O Colapso da Modernidade Brasileira discute a lógica do desenvolvimento nacional, baseado no apartheid social, e relaciona os grandes veios pelos quais se pode ser superado: educação, o fim da desnutrição. a saúde da terra, o fim da dependência, a modernização da infra-estrutura, da democracia, da moeda, do lucro e do salário, da segurança etc.

A Revolução na Esquerda e a Invenção do Brasil discute os impasses ideológicos e políticos da esquerda brasileira, especialmente do PT, ajudando a explicar porque o povo "não vota majoritariamente em um partido que parece representar melhor os interesses populares".

A Revolução nas Prioridades completa a série com "as propostas concretas sobre como inventar o Brasil". Vista em conjunto, a tetralogia não constitui um retrato político, até porque o estilo de Cristovam não possui nada de acadêmico: é ensaístico e até um pouco caótico, sem prejuízo da clareza.

Curiosamente, Cristovam parece ser tão radical na crítica ideológica quanto relativamente moderado na maneira de conceber a política. A ponto de várias de suas propostas e análises beirarem a ingenuidade, especialmente quando discute a possibilidade de setores das elites apoiarem uma proposta como a que ele defende. Ainda assim, é difícil encontrar uma saída pela esquerda para os impasses do movimento socialista no Brasil sem atentar para as questões que ele apresenta para o debate, tanto na tetralogia sobre a modernidade ética, quanto nos seus demais livros: O que é Apartação: o apartheid social brasileiro (Editora Brasiliense, coleção Primeiros Passos); A Eleição do Ditador: uma conspiração perpétua; e A Invenção da Universidade.

Valter Pomar é diretor de T&D.