Sociedade

Ana Maria do Carmo Dias, 52 anos, viúva do operário Santo Dias da Silva

A casa no jardim Santa Margarida, perto da represa de Guarapiranga, é um entra-e-sai danado: a netinha Bruna, de dois anos, atrás do avô adotivo, o "Seba", como Sebastião, 61 anos, o novo companheiro de Ana é chamado; gente atrás dos dois filhos de Ana; a vizinha querendo telefonar; outra, ainda, atrás de conselhos para cuidar de uma velhinha, gente do bairro e vizinhos de Ana Maria do Carmo Dias, 52 anos, viúva do operário Santo Dias da Silva.

Num país com péssima memória histórica, é bom lembrar que Santo era metalúrgico e morreu em 30 de outubro de 1979. Morto por um PM, durante um piquete na frente da fábrica Silvania, em Santo Amaro. Tempos difíceis: era a primeira grande greve dos metalúrgicos paulistanos, ainda durante a ditadura, o direito de greve não era reconhecido, e os grevistas lutavam por melhores salários e pela livre expressão de suas reivindicações.

Os piquetes eram duramente reprimidos pela polícia, os locais em que os metalúrgicos se reuniam, invadidos, e o sindicato era presidido pelo notório pelego Joaquim dos Santos Andrade, o "Joaquinzão"... A morte de Santo Dias foi um marco na cena política: milhares de pessoas saíram às ruas no dia de seu enterro, para protestar contra a violência policial, contra o regime militar. No cortejo, depois da missa de corpo presente celebrada por Dom Paulo Evaristo Arns na Igreja da Consolação, padres, estudantes, operários, intelectuais. Entre eles, o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso.

- Tanta coisa mudou desde aquela época: tudo muda. Nada é aquilo sempre. A realidade está sempre mudando, a mudança talvez seja a única realidade...

Ana Maria viveu e sofreu muita coisa, desde a absoluta dor pela perda do marido e companheiro de lutas, até a intensa batalha para que ele nunca fosse esquecido.

- O nome do Santo nunca foi esquecido, não quero dizer que sou a tal, mas foi por causa da consciência política que eu tinha de mulher e de trabalho. Muita gente até pergunta pra mim: "Ana, você adquiriu toda essa consciência por que o Santo morreu?" Não... A gente tinha todo um trabalho comunitário desde que mudamos pra São Paulo. Tudo que foi feito não foi perdido, a gente aprendeu muito.

Ela se refere ao intenso movimento popular que começou com as lutas dos moradores da periferia da capital, na década de 70 por melhoramentos: água, luz, esgoto, coleta de lixo, transportes, creches, pela regularização dos terrenos clandestinos, por moradia, contra a alta do custo de vida, e dos trabalhadores por melhores salários e pelo direito de organização e greve.

- A gente passou por ditadura, por medo de ser preso, por perseguição, por uma Igreja de Libertação, que deixava espaço pro povo, voltamos para a velha Igreja. Cada tempo é um tempo, passou.

A história de Ana Maria e de Santo Dias se confunde com a da organização política dos trabalhadores da região Sul de São Paulo. Ambos se conheceram numa fazenda da família Camargo Corrêa, em Terra Roxa, no interior do estado. Santo era tratorista e Ana, cozinheira. Ele resolveu sair de lá, depois de ter participado da luta pelo registro em carteira dos trabalhadores rurais e veio morar em São Paulo. Em seguida, os dois resolveram se casar e morar na capital.

- Em 64, eu não sabia o que era política. Foi no começo de 70 que eu comecei a enxergar o que era uma sociedade. E que eu fazia parte dessa sociedade. Até aquele momento, eu achava que pobre era pobre e rico era rico e amém e bença... De repente, quando você começa a enxergar que o atendimento médico, a coleta de lixo, os melhoramentos dos bairros tinham a ver com o político e que tudo era feito pelo homem, que ele criava a sociedade, e não Deus, e que tinha de brigar por esses direitos, achei um fenômeno, parecia uma mágica. Mas de vez em quando me dava um medo disso, porque a gente estava vivendo a repressão. "Eu vou ser morta, vou ser presa, e meus filhos?" Era uma revolução na cabeça de quem tinha vindo dos cafundós do interiorzão...

Em 1973, Ana Maria participava dos clubes de mães dos bairros da periferia. Depois de criado um grupo, as integrantes mais mobilizadas iam para outros bairros ajudar a consolidar outros clubes. Assim surgiram vários núcleos nos Jardins Souza, Nakamura e Alto Riviera, Vila das Belezas, Parque Arariba, bairros da periferia Sul que não estavam no "mapa" da cidadania paulistana. Mulheres de vários deles se reuniam para trocar idéias, o embrião de um forte movimento social baseado nas necessidades da população. Em um desses grupos, surgiu a idéia de fazer um questionário no bairro para saber como estava a carestia.

- Fomos de casa em casa distribuindo o questionário que pedia para as pessoas compararem o preço do arroz, do feijão. Foi aí que surgiu a primeira carta reivindicando a diminuição do custo de vida, entregue ao Congresso pelo deputado Freitas Nobre, que era do MDB.

O Movimento do Custo de Vida cresceu em mobilização, e Ana Maria também. Santo participava da comunidade católica do bairro, dos grupos de operários que surgiram. Foi um dos integrantes da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo. Os dois participavam das mesmas coisas, partilhavam das mesmas idéias.

- A gente se sacrificava muito mesmo para participar do que achávamos importante. Muita gente também fazia isso. A gente olha hoje e vê que contribuímos de alguma forma...

O movimento nos bairros da região sul foi se juntando ao de outros bairros da Capital. Já não eram movimentos isolados, mas articulados entre si, com propostas mais abrangentes, traduzindo o que a população trabalhadora precisava. Até que a greve dos metalúrgicos paulistas se organizou, e os movimentos nos bairros apoiaram. A morte de Santo foi traumática para a família:

- Eu fiquei completamente fora de mim. Meus parentes e os do Santo me levaram para o interior, para me dar um tempo. Eu sofri muito, sentia muito a falta dele. De repente, eu me vi com 35 anos, dois filhos sem o pai, sem o apoio da família, numa carência muito grande sem meu companheiro... O que eu sofri, e a imprensa assediava, muita gente me solicitava. E eu era tão louca que, pra esquecer, eu ia em tudo que me chamavam... Pra superar não foi fácil.

Um grupo de amigos e companheiros próximos fundaram o Comitê Santo Dias da Silva, cuja função era apoiar Ana Maria e acompanhar o julgamento do soldado acusado pela morte do trabalhador. Ao mesmo tempo, exigir que o Estado reconhecesse a responsabilidade pelo assassinato do metalúrgico, pagando indenização à viúva, e fazer todo um trabalho mostrando a liderança de Santo Dias, contribuindo para que ele não fosse esquecido. Mais de 50 entidades da região sul participavam da movimentação: em cada audiência, muita gente se acotovelava na auditoria militar para manifestar seu protesto. Ana recebeu indenização do governo paulista em 1980, e uma pensão paga mensalmente.

- Se não tivesse essa mobilização, Santo seria esquecido.

Nas comunidades da região de Vila Remo, sempre há um poster com fotos do operário e todo ano, se organizam atividades no dia 30 de outubro, dia de sua morte. Mas, a história de Ana não pára por aí. Ela continuou e continua até hoje, atuando nas organizações dos bairros. Por duas ocasiões diferentes, grupos de moradores a procuraram para que lançasse sua candidatura parlamentar. Ela não quis:

- Eu não seria Ana Maria do Carmo, mas sim a "viúva"de Santo Dias. Não seriam minhas idéias a defender, mas o que se esperava de mim. Acho que meu papel é aqui no bairro mesmo, não me vejo na Câmara ou na Assembléia Legislativa... Chega um momento em que a gente já não é mais jovem, e também não tem mais aquele fanatismo pela militância. Eu acho que a gente fez um trabalho bom. Antes eu era muito louca, me lembro que os parentes do Santo achavam que, ele estava metido em coisas muito perigosas, e com a morte dele, então... Quando aquela avalanche de gente saiu pra rua gritando "abaixo a ditadura", no enterro dele, ele que era um congregado mariano... Era um clima muito ruim, muita repressão, muita pressão. Hoje, vejo que a realidade é diferente, mas a vida do povo está muito pior. Tem água, luz, coleta de lixo, os terrenos foram regularizados, mas recentemente a inflação quase nos matou, a violência anda um absurdo nos bairros... Extermínio de criança e todo mundo passivo... Gente matando gente sem motivo. Você acha que isso é certo? Tem alguma coisa errada... Estamos fazendo um levantamento com o pessoal dos Direitos Humanos para saber como são essas mortes aqui na periferia e a razão delas. Que mundo é esse, gente?

Seu espírito crítico a acompanha sempre, está sempre antenada. Uma das suas preocupações agora é com o desemprego:

- Eu vejo o meu filho, o Santinho, tem 29 anos. Ele fez Senac, Inglês, foi até o segundo ano de engenharia, era metalúrgico. Ficou quase dois anos desempregado, uma crise danada. Acabou montando um depósito de material de construção para sobreviver. Viver está mais difícil. Compare conosco: o Santo era um operário, só ele trabalhava, conseguimos construir uma casa, ter um carrinho. Veja o salário de professor hoje... Está tudo mais difícil pra essa juventude... Mas aquilo que fizemos é passado, não volta. Tudo tem seu tempo. O quê vai acontecer amanhã? Não sei! As organizações estão muito em cima de reivindicação como naquele tempo: sem terra, sem casa... Quem entrar na luta hoje, não sei por onde vai começar. Um grupo político? Os políticos estão desacreditados. A classe trabalhadora está numa crise de desemprego, não sei como vai ser... A organização tem de vir da base, mas tem de ter um reforço, um apoio, o que nós tivemos com Igreja, estudante de esquerda naquela época... O povo se organiza, mas não tem conhecimento, estudo, a escola pública é muito ruim. Não sei onde vai ser o estalo: a coisa não é só do Brasil, mas desemprego, violência e drogas acontecem no mundo inteiro.

Jô Azevedo é jornalista