Cultura

Lei dos cibercrimes é contrária aos interesses do Brasil e às políticas implementadas pelo governo Lula

Lei dos cibercrimes é contrária aos interesses do Brasil e às políticas implementadas pelo governo Lula

Grandes transformações provocadas pela (r)evolução das tecnologias da informação e comunicação (TIC) estão mudando as formas de relacionamento. É a superação da "era (puramente) industrial", dos séculos 18 a 20, para a "era da informação". Essas transformações estabelecem novas possibilidades e disputas, uma transição global para as sociedades em rede.

A internet empodera o indivíduo e questiona o papel da organização intermediária (indústrias fonográficas, de software privado etc). Rádios, TVs e jornais perdem espaço para a comunicação por meio das redes que passaram a informar o indivíduo.

Esse cenário não é só favorável à esquerda ou à direita e qualquer lei que criarmos mexe com interesses poderosos e incide sobre a vida de todos. As indústrias precisam aprender a trabalhar com essa nova dinâmica produtiva para reposicionar negócios ou tentar conter os hackers, que são os inovadores tecnológicos.

A inovação "está na rede" e fugiu ao controle dos centros de pesquisas governamentais e das grandes empresas de tecnologia. Toda inovação e ferramentas bem-sucedidas não estão protegidas por copyright restritivo, são disponibilizadas sob licença livre ou de domínio público. O compartilhamento e a liberdade são elementos-chave do trabalho criativo e para um novo modelo econômico exitoso na sociedade em rede. As intermediárias querem retardar o inevitável. Para elas, a internet é uma ameaça. Para nós, uma grande oportunidade.

O governo Lula, mesmo com políticas ainda fragmentadas, vem apostando na nossa transição para uma sociedade em rede democrática, por meio de vários projetos e iniciativas liderados pelo Ministério das Relações Exteriores.

A opção pela inclusão digital com software livre não é só ideológica. O governo propõe um projeto de transição para a sociedade em rede. Implementa projetos antagônicos à proposta de lei do senador Eduardo Azeredo1. E faz isso não só porque é de esquerda, mas porque é uma oportunidade para o Brasil.

Um primeiro marco legal sobre a internet brasileira não pode criar um cenário e uma imagem desfavoráveis ao Brasil. Podemos construir um marco legal inédito.

Ofensiva internacional 

A força dos poderosos lobbies internacionais da indústria fonográfica e cinematográfica, das grandes editoras, das indústrias do software proprietário, do sistema financeiro e dos organismos de repressão fez surgir propostas de lei em diversos países visando ao controle sob os internautas. Iniciativas que violam e afrontam os direitos civis.

A França aprovou lei que desligava a internet de quem estivesse baixando conteúdos protegidos após um terceiro aviso. Iniciativas semelhantes foram apresentadas no Reino Unido, Suécia, Brasil, entre outros países. Aqui, além do Projeto Azeredo, há o do deputado Bispo Gê Tenuta (DEM-SP), que "pirateou" a lei francesa.

A única forma de controlar o tipo de conteúdo a ser compartilhado é estabelecer a quebra da privacidade e um vigilantismo indiscriminado, inaceitáveis numa sociedade democrática. Por essa razão, o Conselho Constitucional Francês considerou ilegal a lei, declarando: "O acesso à informação e a livre comunicação do pensamento são direitos fundamentais. O acesso à internet torna-se derivado do direito fundamental de expressão".

Em 2008, o Tribunal de Justiça da União Europeia apoiou o anonimato, sentenciando que os provedores e operadoras não devem revelar a identidade dos usuários.

Algumas práticas que o Projeto Azeredo quer criminalizar, como as descargas não autorizadas e o p2p2, não são criminalizadas na Europa.

Os que defendem o Projeto Azeredo evocam a Convenção de Budapeste, conhecida como a convenção de cibercrimes, aprovada no contexto dos atentados de 11 de setembro nos EUA, que fere os direitos civis em nome da luta antiterrorista. O Brasil não é signatário dessa convenção e o Ministério das Relações Exteriores desenvolve sua política em direção oposta. Segundo o diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-RJ, Ronaldo Lemos, "o Brasil não tem obrigação de adotá-la. Mais importante ainda é o fato de o texto da convenção ser um dos mais controversos no cenário internacional. Apenas 43 países a assinaram e, destes, somente 21 se comprometeram com a ratificação. Trata-se de número expressivamente baixo para um tratado internacional lançado há mais de sete anos. Entre os que adotaram a Convenção de Budapeste, a maioria consiste em países desenvolvidos cujas regras sobre a internet já se encontram amadurecidas. Os EUA (os mais interessados em aprovar a convenção)3, por exemplo, somente ratificaram o tratado depois de fazer treze ressalvas ao texto".

Nas Cúpulas da Sociedade da Informação de Genebra (2003) e Túnis (2005), o Brasil liderou um bloco que propunha uma nova ordem jurídica em direção às iniciativas de flexibilização da propriedade intelectual e dos novos modelos de direito autoral, como a do software e da cultura livres. Em oposição, países liderados pelos EUA e pelos interesses de suas empresas.

Agenda de Desenvolvimento 

O Brasil propôs e lidera, com a Argentina, uma revisão do papel da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), chamada Agenda de Desenvolvimento. Esse debate questiona o papel da OMPI (estimular a inovação, remunerar os inovadores e criadores, para que continuem inovando, e estimular a competitividade), que hoje serve para o controle da inovação, com seus tratados de copyright e tentativas de patentear e privatizar o conhecimento humano. Serve mais aos interesses das indústrias hegemônicas do que aos criadores.

O Ministério da Cultura (Minc) estimula formas criativas da revolução digital. Essa relação do governo, enraizada nas bases da sociedade civil de internautas brasileiros, tem sido o norte dos programas de inclusão digital do ministério. Os Pontos de Cultura do programa Cultura Viva são bons exemplos de como se estabelece uma relação de apropriação das tecnologias e do controle do processo em programa, inicialmente governamental, que vem transferindo autonomia para os gestores, que o transformaram em um projeto da sociedade.

O programa ainda abre um debate mundial sobre o ordenamento jurídico da gestão autoral, copyright e propriedade intelectual. Afirma, na prática, que o atual ordenamento está ultrapassado e defende a construção democrática de um novo, com novas práticas. É uma grande oportunidade para o Brasil, em favor do processo criativo e da inovação, e não um freio.

Os milhares de agentes dos Pontos de Cultura estão contra a aprovação do Projeto Azeredo e são lideranças importantes da resistência que se manifesta através da rede.

A inclusão digital do governo Lula tem a mesma base de compreensão política sobre as prioridades e a forma como incluímos a sociedade no novo cenário. Os programas de inclusão digital estimulam os novos conceitos, as novas formas de produção, e necessitariam ainda estimular um novo ecossistema de empresas produtivas do setor. É educar para o novo cenário, e não fortalecer o que nos foi desfavorável.

A aprovação do PL instituirá, para cada ponto de inclusão digital (geridos por grupos de pescadores, quilombolas, associações comunitárias etc.), a obrigação de criar estrutura tecnológica e de polícia privada. Identificar e guardar os dados dos utilizadores para, se necessário, entregar à Justiça não deve ser tarefa dessas organizações, tampouco de um programa de inclusão digital.

Estado de Direito ou policial 

É óbvio que somos favoráveis aos mecanismos de investigação e da repressão aos crimes cometidos por meio da internet, mas não podemos tipificar como criminosas as novas práticas surgidas na sociedade em rede. A essência do debate é como mantermos rigor, coragem e até ousadia para prender esses criminosos sem ferir os princípios dos direitos civis e humanos; continuar agindo na repressão ao crime dentro dos marcos de um Estado de Direito, sem cair na tentação de um Estado policial.

Polícia Federal e demais órgãos de repressão, a partir de sua ótica parcial, viram no Projeto Azeredo um avanço para suas práticas investigativas e repressivas.

No 10º Fórum Internacional de Software Livre, em junho, em Porto Alegre, o presidente Lula determinou ao ministro Tarso Genro que construísse uma proposta de código civil e afirmou que o Projeto Azeredo "não visa proibir os abusos na internet, visa fazer censura".

As inúmeras interpretações, de juristas, especialistas em segurança digital, hackers, desenvolvedores de tecnologia e de muitos outros, indicam que os objetivos do projeto têm um resultado concreto que vai além. Certas ou erradas, dizem que esse texto criaria instabilidade jurídica. Em linguagem chula: se o cara não for preso por compartilhar músicas, filmes, cultura, através das redes P2P e de outros mecanismos, ele vai à julgamento por um juiz penal ­ o mesmo que julga homicídios e estupros. Isso é inaceitável, afinal a internet não é um caso de polícia.

Marcelo D'Elia Branco é o diretor geral da Campus Party Brasil, o maior encontro mundial de comunidades de internet, e coordenador geral da Associação Software Livre.org