Sociedade

A vida das mulheres e sua relação com a política mudou. E hoje 63% defendem a democracia como melhor forma de governo

A vida das mulheres e sua relação com a política mudou. E hoje 63% defendem a democracia como melhor forma de governo. Faltam agora chances reais de participação para as mulheres nos partidos e parlamentos

baixar pdf

tb91-mulher-e-politica-elza-fiuza.jpg

As mulheres, os partidos e as eleições de 2010. Foto: Elza Fiuza/ABr

Até o final da década de 1970, pouco se sabia sobre a relação entre mulheres e política. Hoje, os estudos sobre mulheres, gênero e política fazem parte de um arsenal de conhecimento com seu próprio mainstream, e são críticos das pesquisas que tratavam as mulheres como seres invisíveis.

Para esclarecer a sub-representação da mulher na política formal, trabalho recente (Fox & Lawless, 2010) é crítico das afirmações de que ela se deve às altas taxas de reeleição e ao pequeno número de candidaturas femininas. O problema, segundo os autores, é que fica subentendido que, se se aumentasse o número de candidatas e a esse aumento correspondesse maior qualificação, a resposta dos partidos e do eleitorado seria aquela anteriormente dada aos candidatos homens.

Os mesmos pesquisadores centraram-se nas diferenças da ambição política entre homens e mulheres. Um survey nacional realizado por estudiosos norte-americanos (Political Ambition Study) tomou uma amostra de homens e mulheres das áreas de Direito, negócios e empresas, professores e ativistas políticos, já que a maioria das candidaturas vem desses segmentos. A principal dimensão foi a socialização diferencial de gênero, operacionalizada por meio das variáveis cultura política, responsabilidades familiares, autopercepção de qualificação e motivações ideológicas. A conclusão foi que o sexo ainda é um preditor de futuras candidaturas. Mesmo que semelhante o grau do interesse pela política, a consideração de uma possível candidatura foi de 59% entre os homens e 43% entre as mulheres. As responsabilidades familiares, como a de criar os filhos, entre as mulheres, as taxas são muito mais altas que entre os homens. É a velha questão da divisão do trabalho doméstico e do tempo como um fator que intervém decididamente no envolvimento com a política. E, quanto à autopercepção para a política, as taxas são maiores entre os homens. Relembramos que as pesquisas feitas pela Fundação Seade em São Paulo mostraram que as candidatas apresentam escolaridade muito mais alta que a dos homens. As mulheres se lançam após maior número de anos de estudo, por se sentirem mais seguras.

A pesquisa da Fundação Perseu Abramo e Sesc registrou diferenças na relação das mulheres com a política entre 2001 e 2010. Em 2001, somente 38% das mulheres afirmaram que a política é “muito importante”. Em 2010, esse número saltou para 52% (para os homens foi de 57% no mesmo ano). Quando se indagou sobre “o grau de influência da política na vida pessoal”, 55% das mulheres em 2001 e 63% em 2010 mostraram a mudança de percepção de como a política faz diferença na vida das pessoas. Os homens confirmaram tal percepção em proporção maior, 76%. O destaque recai na opinião sobre a eventual melhora da política “se houvesse mais mulheres em postos importantes”, pois 70% das mulheres e 49% dos homens concordam com a afirmação.

Em quase todos os estudos em décadas anteriores, as mulheres eram vistas como conservadoras, como massa de manobra dos populistas e suporte aos regimes de exceção. Aquelas conclusões fazem parte do passado, se considerarmos que, em 2001, 47% concordavam que a democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de governo, e em 2010, 63%. Os homens tiveram a marca de 72%. As mudanças no eleitorado feminino foram detectadas no início da década de 1980, com base nos dados eleitorais da Pesquisa sobre as Eleições Municipais Brasileiras de 1982, a partir de pesquisa empreendida por um consórcio de universidades reunidas na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Lançávamos duas questões:

a) as mulheres participam menos na política, têm menor interesse, se comparadas com os homens?

b) as mulheres são politicamente mais conservadoras que os homens? (Avelar, 1989)

As perguntas sobre a baixa participação das mulheres e seu menor interesse foram retiradas da bibliografia norte-americana (Almond & Verba, 1963) e, sobre o conservadorismo feminino, utilizamos o clássico estudo de Maurice Duverger (1955). Àquela época já foi possível detectar a problemática do modern gender gap, expressão usada para analisar a relação entre gerações e preferências políticas, incluindo a dimensão do gênero. No trabalho recente de Inglehart e Norris (2010), evidencia-se que as mulheres mais velhas votam mais à direita, ao passo que as mais jovens são mais progressistas.

Quais siglas facilitam a entrada das mulheres?

Desde a ditadura militar sabíamos dos maiores ganhos do partido do governo, a Arena, nos municípios e estados mais pobres e do interior do país. As “capitais periféricas” manifestavam um comportamento eleitoral de oposição. Após a reforma partidária de 1979, os partidos de esquerda encontraram terreno propício para amealhar eleitores para suas hostes. Um fator decisivo foi a emergência de movimentos sociais e organizações da sociedade civil que passaram a reivindicar visões alternativas àquelas da política tradicional.

A mudança pode ser vista no mapa1 abaixo.

A faixa amarela clara mostra regiões com presença das mulheres nos legislativos estaduais próxima de zero. Os estados que menos elegeram deputadas foram Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Amapá, Roraima e Alagoas. Foi também nessa faixa que encontramos, em estudo anterior (Avelar & Teles, 2007), indicações claras da predominância do PMDB e do PFL/DEM, além  de partidos menores e de direita.

A faixa amarela clara revela também quais estados elegeram poucas mulheres, a maioria pelos partidos de direita (Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Amazonas, Roraima e Alagoas).

A maior presença de mulheres nos partidos de esquerda não é acaso2. Mesmo que nem todas as candidatas eleitas por tais partidos sejam ativistas feministas, a maioria transita pela esquerda da sociedade civil, como argumentaremos adiante. Os partidos de esquerda são sensíveis às demandas feministas em maior medida que os de centro ou de direita, que as desconhecem e acabam por “guetizá-las” nas seções “mulheres”. Alguns congregam mais mulheres, como é o caso do PPS. Mesmo assim, suas preocupações não são incorporadas a sua agenda. Em outros, a situação é de invisibilidade ou de competitividade desigual, e a expectativa dessas mulheres é que se abram outros canais, além dos partidos, para que tenham reconhecimento na política.

Uma militante feminista avalia a situação das mulheres em seu partido: “Temos de repetir mil vezes para nossos companheiros que estamos aqui, presentes, e temos uma história de articulação de interesses muito antiga, jamais agregada nos partidos” (Rodrigues, 2007). Segundo ela, “foram os movimentos e as ONGs que viabilizaram o trabalho político das feministas, pois, para um grande número de mulheres, não havia nenhuma possibilidade de introduzir nossas preocupações nos partidos políticos”.

Estruturas dos partidos fazem diferença?

As oportunidades para mulheres se encontram nos partidos programáticos. Os clientelísticos e pouco estruturados (Caul, 2010) preferem personalidades conhecidas. Em diferentes regiões predominam ainda os partidos de famílias ou de clientelas, cujas bases são as redes familiares e a origem social de seus filiados. As famílias políticas são reconhecidas pela população, e os conflitos intra e interpartidários nada mais são do que contendas entre pares. Em tais contextos, a sobrevivência de políticas de clientela nega os processos de democratização observados em outros contextos do país. As mulheres que vêm dessas regiões perguntam: “Como avançar para a modernização dessas estruturas?”

Os partidos programáticos e os de massas, no geral ideológicos, segundo Duverger (1955), podem também ser vistos a partir do eixo esquerda-direita. Reis (2010) discute as origens dos partidos de esquerda como firmadas em clivagens de classes, etnias e sobretudo na questão social, “uma questão sempre tratada fora do sistema político competitivo (Keck, 1991). A tais clivagens se somam as de gênero, as mulheres se organizando em torno de identidades próprias, clamando pela diferença, pela liberdade de ser (Melucci, p.135) e de levar ao sistema político suas preocupações. No Ocidente, a desigualdade é parte intrínseca do seu repertório, pois apresentam menor status social e fraca presença na política formal, uma cidadania de segunda classe. Em síntese, os partidos não se comprometem com a efetiva entrada das mulheres3.

O aumento do número de mulheres representantes, por si só, não agrada às feministas. Em pesquisas iniciadas desde a década de 1980, observou-se a síndrome da lealdade perversa: quando eleitas, as mulheres seguem a orientação dos partidos, deixando para trás temas de origem. Um conhecido jargão das feministas nórdicas é “não é suficiente termos mais mulheres, é imprescindível que elas sejam feministas e/ou ligadas aos movimentos, garantindo assim a introdução de seus temas na agenda política”. Até agora é evidente a distância entre a agenda política e os temas de gênero.

Dos candidatos a candidatos

Os procedimentos para a seleção de candidatos são variados, desde a pura e simples indicação do líder partidário (PP, PFL/DEM) até os que se realizam por meio de órgãos colegiados dos partidos (PMDB, PSDB). No PT, os selecionadores são os filiados, que fazem as indicações preliminares. Depois, cabe à comissão eleitoral a primeira seleção. Em seguida, os eleitos para as convenções realizam a seleção final. Dada a origem do partido, os postulantes têm de passar pelas fases descritas no estatuto, embora alguns pré-candidatos discordem das regras.

Segundo Altmann (2010), estudando a seleção de candidatos à vereança em Pelotas (RS), um de seus entrevistados declarou que “a convenção é pró-forma. As correntes internas já definiram seus candidatos” (p.99). Mesmo assim, entrevistadas de Altmann reafirmam que, na maioria dos casos, a ligação das mulheres com os movimentos comunitários e trabalhos sociais tem se apresentado como um dos trunfos para que os partidos as selecionem. A situação é diferente em um partido como o PP. Neste, “quem decide mesmo é uma comissão de três ou quatro” (Altmann, 2010), pois o objetivo é preservar o posto na direção.

E o sistema eleitoral?

O sistema eleitoral afeta o sucesso ou insucesso das mulheres no sistema representativo. Há consenso de que o sistema proporcional de lista aberta é menos favorável às mulheres por incentivar a competição em um mesmo partido e uma corrida eleitoral entre capitais – financeiros ou de prestígio. A lista fechada com o financiamento público favorece as minorias e as mulheres. O sistema proporcional de lista fechada ou pré-nominada, com obrigatoriedade de posição competitiva das mulheres conforme o estabelecido pela lei de cotas e com a possibilidade de voto no candidato, é condição que permite a eleição de maior número de mulheres (Caul, 2010, p.159). Seria a adoção de cotas reais. Até o momento, as cotas têm apenas valor simbólico.

No debate sobre reforma política estão a reforma do sistema eleitoral e a mudança da legislação proporcional de lista aberta para lista pré-nominada, na qual a relação dos candidatos homens e mulheres seria de 50%. O horizonte da proposta é de uma mudança substantiva, encontrada apenas em alguns países. Os movimentos e as ONGs reunidos em uma Plataforma “Reforma Política – Iniciativa popular para a reforma do sistema político”, lançada em março de 2011, apostam não só nessa mudança no sistema eleitoral, mas também no fortalecimento da democracia direta, na democratização e fortalecimento dos partidos e no controle social do processo eleitoral. Se os instrumentos forem aprovados, poderemos afirmar que o país avança em sua construção democrática, inclusive do ponto de vista do gênero.

Referências

ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney (Org.). 1963. The Civic Culture: Political, Attitudes and Democracy in Five Nations. Princeton: Princeton University Press.

ALTMANN, Cristina. 2010. “Polí­tica local e seleção de candidatos a vereador: contribuições a partir do caso de Pelotas (RS) em 2008”. Dissertação de mestrado. Instituto de Sociologia e Política Universidade Federal de Pelotas. Pelotas (RS).

AVELAR, Lúcia. 1989. O Segundo Eleitorado: Tendências do Voto Feminino no Brasil. Campinas (SP): Ed. Unicamp.

AVELAR, Lúcia; TELLES, Maria I.M.“Lentas mudanças: o voto e a polí­tica tradicional” in Opinião Pública. Campinas (SP), v.14, n.1, p.96-122, maio de 2008.

BOHN, S. 2009. “Mulheres brasileiras na disputa do legislativo municipal” in Perspectivas –Revista de Ciências Sociais. São Paulo: Ed. Unesp, v.35.

BRAGA, Maria do Socorro Sousa. “Organizações Partidárias e seleção de candidatos no estado de São Paulo” in Opinião Pública. Campinas (SP), v.14, n.2, p.454-485, nov. de 2008.

CAUL, Miki. 2010. “Women’s representation in Parliament: the role of political parties” in KROOK, Mona L.; CHILDS, Sarah (Ed.). Women, Gender, and Politics: a Reader. Oxford: Oxford University Press, p.159-166.

DUVERGER, Maurice. 1955. La Participation des Femmes à la Vie Politique. Paris: ONU.

FOX, Richard L.; LAWLESS, Jennifer L. 2010. “Entering the Arena? Gender and decision to run for office” in KROOK & CHILDS (Ed.).

INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa. 2010. “The developmental theory of the gender gap: women’s and men’s voting behavior in global perspective” in KROOK & CHILDS (Ed.), p.127-134.

KECK, Margaret E. 1991. PT – A Lógica da Diferença. São Paulo: Ática.

MELUCCI, Alberto. 2001. A Invenção do Presente. Petrópolis (RJ): Vozes.

RANGEL, Patrícia. “Demandas feministas e políticas de gênero” in CONGRESSO ALACIP, Buenos Aires, jul. 2010. Mimeogr.

REIS, Fábio W. “Identidade política, desigualdade e partidos brasileiros” in Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n.87, jul. de 2010.

RODRIGUES, Almira. Entrevista concedida a Lúcia Avelar, 2007. Mimeogr.

Lúcia Avelar é professora do Instituto de Ciência Política da UnB, pesquisadora do CNPq, e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz