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Na Nicarágua, o modelo de sociedade descrito como cristão, socialista e solidário deu a Daniel Ortega e a Frente Sandinista mais cinco anos de mandato

Nas eleições de 6 de novembro, na Nicarágua, o modelo de sociedade descrito como cristão, socialista e solidário conquistou as maiorias e levou à vitória Daniel Ortega e a Frente Sandinista, com 62,46% dos votos e maioria absoluta na Assembleia Nacional, 63 dos 92 deputados

Especialistas dizem que os sandinistas ganharam graças aos programas sociais

Especialistas dizem que os sandinistas ganharam graças aos programas sociais. Foto: Oswaldo Rivas/Reuters

No final dos anos 1970, o mundo assistiu com assombro à rebelião de uma multidão de jovens, mal saídos da infância e armados com pistolas de baixo calibre e bombas caseiras, contra o Exército da ditadura de Anastasio Somoza, armado até os dentes e treinado por militares norte-americanos. A vitória daqueles jovens mudou o curso da história na América Latina e colocou os militantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) no epicentro dos fatos políticos que se sucederam em todo o continente.

Veio o 19 de julho de 1979 (o dia em que triunfou a revolução popular no país). Trinta e dois anos depois “um aguaceiro de garotos”, conforme descreveu um dirigente sandinista, inundou as urnas e, sem pistolinhas, bombas caseiras nem combates nas ruas, senão com votos, possibilitou uma vitória eleitoral esmagadora da FSLN. Pela segunda vez, a juventude nicaraguense surpreendeu o continente inteiro e além.

As cifras são eloquentes. Mais de 1,5 milhão de cidadãos, compondo 62,46% dos votos, outorgou a Daniel Ortega e à FSLN um novo mandato de cinco anos e maioria absoluta na Assembleia Nacional, 63 dos 92 deputados. A reboque, destroçaram uma direita provinciana e arcaica, dividida e sem propostas, carente de liderança e alheia à realidade do país.

A direita não soube aceitar a derrota de 2006, quando perdeu a Presidência da República, e dificilmente o fará agora. Sem referências na metrópole, uma vez que o neoliberalismo entrou em crise mortal na América Latina, e com um governo que demoliu gradualmente a mitologia perversa do retorno da guerra e dos confiscos, a direita ficou órfã de ideias. A fim de se reinventar, recorreu ao de sempre, ou seja, tentar semear o medo, dessa vez contra a enteléquia da ditadura. Não pôde e tampouco quis conquistar a simpatia da população.

Muitos de nós tivemos o privilégio de participar dos dois episódios. Os historiadores e os especialistas se encarregaram de esmiuçar as razões e descrever os pormenores. Agora é hora de viver, restabelecer o coração sobrecarregado de emoções e vitórias, refletir sobre seus alcances e testemunhar sobre o que ocorreu.

Cinco anos de campanha

O país realizou seu sexto processo eleitoral livre, desde que a Revolução Popular Sandinista inaugurou a era democrática na Nicarágua (1984, 1990, 1996, 2001, 2006 e 2011). Cinco forças políticas concorreram.

A FSLN lançou Daniel Ortega para presidente e o general reformado Omar Halleslevens, ex-chefe do Exército de Nicarágua e chefe dos guerrilheiros durante a luta contra a ditadura somozista, para vice-presidente. Além disso, os sandinistas encabeçavam uma aliança com mais nove agremiações políticas, entre elas quatro grupos evangélicos, um indígena e dois de ex- contrarrevolucionários, seus antigos inimigos.

O Partido Liberal Constitucionalista (PLC) teve como candidato Arnoldo Alemán, presidente entre 1997 e 2002, que esteve preso devido a atos descomunais de corrupção em sua gestão, até que finalmente foi exonerado de todos os cargos. O candidato a vice foi o deputado Francisco Aguirre Sacasa, chanceler em seu governo. O PLC teve como aliado o Partido Conservador, antigo instrumento da oligarquia e sócio da família Somoza durante seus 45 anos de ditadura, que culminaram em 1979.

O Partido Liberal Independente (PLI) apresentou Fabio Gadea Mantilla, empresário de rádio e deputado do PLC (do qual se desligou seis meses antes) no Parlamento Centroamericano (Parlacen). Como candidato a vice-presidente, Edmundo Jarquín, que saiu da FSLN em 1994. O PLI encabeçou uma aliança diversificada, integrada sobretudo por desertores dos partidos sandinista e Liberal Constitucionalista.

A Aliança Liberal Nicaraguense (ALN) participou do pleito com o deputado e ex-militar da ditadura somozista Enrique Quiñónez, o qual também saiu do PLC um ano antes das eleições. Seu par foi Diana Urbina, outra desertora do PLC. Esse partido lançou em 2006 Eduardo Montealegre, um banqueiro acusado de subtrair US$ 600 milhões dos cofres públicos, mediante um grande esquema de corrupção entre os anos 2000 e 2005. A ALN ficou em segundo lugar, atrás da FSLN.

A Aliança pela República (Apre) apresentou o advogado Róger Guevara Mena, também ex-membro do PLC, e para vice Elizabeth Rojas, da Assembleia de Deus, um grupo poderoso de cristãos evangélicos.

A campanha eleitoral de 2011 começou cinco anos antes, um dia depois de Ortega e a FSLN deixarem de ser oposição, derrotando duas agremiações da direita. Durante aqueles dois meses de transição, enquanto os sandinistas teciam alianças com os setores sociais, os meios de comunicação corporativos não desperdiçavam a oportunidade de solapar a legitimidade do novo poder que emergiu das urnas.

Após a posse de Ortega, em 10 de janeiro de 2007, enquanto os sandinistas se empenhavam em fazer um bom trabalho – sob a lógica da restituição dos direitos convertidos em mercadorias por dezessete anos de desgoverno direitista, com uma mudança radical de estilo, de políticas e ações –, as forças opositoras, encabeçadas pelas empresas proprietárias de dois jornais diários do país, desqualificavam tudo o que era feito, dedicando-se especialmente a demonizar as figuras de Daniel e Rosario Murillo, assim como de sua família.

Depois do rumoroso fracasso eleitoral de 2008, quando a FSLN ganhou 109 dos 153 governos municipais, as forças de oposição tentaram paralisar o funcionamento do Estado. Para isso, aproveitaram o fato de que os dois grupos liberais tinham votos suficientes para impedir a seleção de 27 funcionários de primeiro escalão, cujo período de atuação legal expirava entre 2009 e 2011:  sete magistrados do Conselho Supremo Eleitoral (CSE) e seus três suplentes, a metade dos dezesseis magistrados da Corte Suprema de Justiça, os cinco da Controladoria-Geral da República, os dois da Procuradoria de Direitos Humanos e os dois da Superintendência de Bancos.

Montealegre e Alemán, os chefes da oposição derrotados em 2006, negaram-se a negociar com a FSLN e paralisaram a eleição dos funcionários, a qual requer no mínimo 56 votos (os sandinistas só dispunham de 43). Em janeiro de 2010, Ortega contra-atacou essa manobra, o ponto alto do plano de “acossamento e derrubada” forjado pelas cúpulas liberais e seus patrocinadores norte-americanos e europeus. Surpreendendo a oposição, assinou decreto que mantinha no cargo todos os funcionários com mandato vencido até que a Assembleia elegesse seus substitutos. Os liberais não quiseram negociar, mas os próprios correligionários que ocupavam alguns dos cargos acataram o decreto e todas as instituições estatais retomaram seu funcionamento. A partir desse momento, o país se aprumou até as eleições de novembro de 2011.