Pensei muito para escrever sobre Alipio Freire como artista plástico. É muito difícil, ele não cabe muito nessa categoria, pois transborda logo para as tantas outras coisas que fez durante a sua bela vida. Vida bela porque era um esteta, na mais clássica definição, de quem encaixou tudo com fineza e elegância, pensamento e ação.
Quando conheci de fato o Raimundinho*, como vários de nós o chamávamos, ele estava justamente desenhando no seu mocó, na parte superior de uma cama beliche, na cela 3 do Pavilhão 1 do Presídio Tiradentes, em 1970. Ficamos logo amigos. Como eu, ele também era jornalista e artista e, como intuí, era o cara para quem eu gostaria de mostrar meus próprios desenhos e trocar umas idéias.
Já havia lá uma pequena turma que se dedicava ao traço e à cor – Carlos Takaoka, Zé Wilson e outros que conheci depois, inclusive uma turma de arquitetos – Sergio Ferro, Rodrigo Lefevre e Carlos Henrique Heck, Sergio Souza Lima e Julio Barone –, com os quais montamos um verdadeiro ateliê encarcerado. Escrevi uma vez sobre isso aqui mesmo na Teoria e Debate, na edição 27, de 1994: era um festival de materiais para pintar, desenhar, colar, que nos abriram uma enormidade de possibilidades.
E o desenho do Alípio? Em geral eram bem traçados perfis, com algo da clareza e do colorido forte da pop art. Mas não só: tropicalismo misturado com art nouveau, às vezes com barroco e balangandãs. Usava fazer também colagens. Em alguns desenhos apareciam ornamentos de folhas bem verdes, flores e lábios bem vermelhos. Cores de ecoline, um tipo de aquarela liquida, que era o caminho mais curto para o que entendíamos psicodélico. Quase sempre introduzia palavras, frases complementando as figuras. Ironias, conceitos, poesia.
Quando Alípio e eu nos reunimos para um depoimento filmado sobre arte no Tiradentes, vi uma série especialmente bonita de gravuras que ele fez representando a Rita. Aliás a Rita compunha com Alípio uma dupla muito bela. Quem não o viu em alguma festa deixar a bengala de lado para dançar animadamente com ela? Os que não sabiam dos seus problemas de coluna supunham que a bengala era um adereço de charme.
Não tenho notícia de qualquer exposição individual de seus desenhos e pinturas. Tenho a impressão que grande parte da sua obra, em particular do tempo da cadeia, foi presenteada a amigos e companheiros. Portanto, sua exposição está na casa de muita gente.
Mas o desenho dele brilhou nas muitas exposições coletivas que organizou com trabalhos de arte e artesanato que recolheu entre os presos políticos de São Paulo. Durante muito tempo ele montou e guardou todo um acervo, que depois circularia por muitos lugares, em espaços culturais, em sindicatos, associações. Era uma dupla militância, na arte e na preservação da memória.
Algumas dessas exposições foram marcantes e tiveram bastante repercussão. Foram duas no Memorial da Resistência, que fica no prédio do torturante Departamento de Ordem Política e Social (Dops) onde está agora a Pinacoteca Estação. Uma no Centro Cultural São Paulo e outra no Memorial da América Latina, patrocinada pela Rede Globo para reforçar sua minissérie “Queridos Amigos” sobre jovens na época da ditadura.
Nosso último encontro, pouco antes da pandemia, foi para tratar da arte no Tiradentes. Eu ia lançar no Memorial da Resistência um livro com desenhos que fiz durante minha passagem por lá e combinamos descrever e comentar as coisas que fazíamos. Estávamos em seu apartamento no Bom Retiro, muito perto, mas muito perto mesmo de onde fora o presídio.
A Covid matou os nossos planos. Perdemos o Raimundinho.
*Raymundo era o segundo nome de Alipio.
Sergio Sister é jornalista e artista plástico