Economia

Subsídios técnicos para o debate democrático, apontando possibilidades concretas de se promover justiça social, com sustentabilidade econômica e ambiental

Publicação da série Textos para Discussão - Economia e Desenvolvimento (pdf aqui)

Apresentação

A concentração global da riqueza aumentou durante a pandemia. A fortuna de 2.775 bilionários cresceu “mais em um ano do que nos últimos quatorze anos” (oxfam, 2022). No Brasil, 40 novos bilionários foram incluídos na lista da Forbes em 20211. Os 20 maiores bilionários do país têm mais riqueza do que 128 milhões de brasileiros (60% da população)2.

Nesse cenário, instituições internacionais e governos de países centrais passaram a propor “gastar mais” (mesmo gerando déficit) e “tributar mais” as altas rendas e riquezas. “Taxar e gastar pode virar o novo normal na economia”, sentencia um comentarista do conservador Financial Times3.

Vários analistas consideram que a crise atual é semelhante às grandes crises vividas pelo capitalismo no século XX. Para o secretário-geral da OCDE, por exemplo, o momento requer “nível de ambição semelhante ao do Plano Marshall”, bem como visão “inspirada no New Deal, mas em escala planetária”4. Segundo Piketty (2014), no período entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda, passando pela “Grande Depressão” de 1929, e após a Segunda Guerra, a tributação sobre as altas rendas e riqueza teve papel importante no reforço da capacidade financeira dos Estados nacionais exigido para enfrentar crises daquela magnitude.

No Brasil, reduzir a desigualdade é imperativo civilizatório, pois somos uma das nações com o maior abismo entre ricos e pobres do mundo. Em parte, isso se deve à injustiça fiscal, pois a carga tributária efetiva no Brasil não é alta, mas mal distribuída, sendo elevada para as camadas de baixa renda e apenas residual para as abastadas. A raiz desse problema está na estrutura da nossa tributação: por um lado, arrecada-se residualmente (e de maneira pouco progressiva), na forma de impostos sobre renda e riqueza da pessoa física; e, por outro lado, arrecada-se excessivamente, por tributos sobre o consumo que incidem proporcionalmente mais sobre a renda dos mais pobres. Silveira e outros (2022) mostram que esses tributos representam 23,4% da renda dos 10% mais pobres; e 8,6% da renda dos 10% mais ricos.

Essa conjuntura marcada pelo agravamento da desigualdade social exacerbou os limites da “austeridade” econômica. O quadro requer ações que impulsionem o crescimento sustentável, econômica e ambientalmente, reforcem o papel do Estado e tributem mais as altas rendas e riquezas. “É preciso colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda”, sintetiza o ex-presidente Lula.

Porém, no Brasil, sequer as ideias mainstream de “gastar mais” e “tributar mais” prosperam. Na Reforma Tributária, a agenda prioritária do Congresso Nacional está apartada do debate internacional, contemplando, basicamente, a simplificação da tributação do consumo. A tardia proposta de reforma do Imposto de Renda elaborada pelo governo federal, e modificada no Congresso Nacional, foi desvirtuada ao ponto de se transformar em uma grande desoneração da renda do capital, além de manter uma série de brechas para os muito ricos elidirem o pagamento de imposto. Ela vai na direção contrária à da justiça fiscal que pretendemos promover.

A “Reforma Tributária solidária, justa e sustentável”

Nesse cenário, em 2019, os partidos populares (PT, PC do B, PDT, PSB, PSOL e Rede, na Câmara dos Deputados), com o apoio dos governadores que integram o Consórcio Nordeste, apresentaram proposta alternativa que prioriza a taxação das altas rendas e riquezas. Trata-se da “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável” consolidada pela Emenda Substitutiva n. 1785.

O objetivo desse artigo é apresentar as diretrizes gerais da Emenda 178, cujo foco central é a justiça tributária. Ela visa a lidar com dois tipos de iniquidades. A primeira é que os mais pobres, precisamente aqueles com menor capacidade econômica, hoje arcam com alíquotas proporcionalmente mais altas sobre a própria renda do que os mais ricos. Isso se deve à combinação de (i) tributação excessiva (e regressiva) do consumo e (ii) tributação residual (e pouco progressiva) da renda e da riqueza, o que faz com que o sistema tributário como um todo adquira perfil regressivo.

Ademais, os inúmeros benefícios tributários concedidos à renda do capital e aos mais ricos têm como consequência não somente restringir a incidência do imposto de renda ao topo da distribuição, mas também criar brechas para práticas de elisão tributária e assimetrias em relação ao tratamento conferido aos rendimentos do trabalho. Deriva daí outro tipo de iniquidade entre indivíduos com o mesmo nível de renda, que é exemplificada pelo fato de os trabalhadores assalariados arcarem com alíquotas muito mais altas do que aqueles que vivem da renda do capital.

Mudar esse quadro passa tanto por recalibrar a composição da carga tributária, reduzindo a parcela que incide sobre consumo, e ampliando os impostos sobre renda e riqueza, quanto por resgatar o grau de progressividade desses impostos. Ao fim e ao cabo, promover a justiça social, do ponto de vista tributário, exige que se busque simultaneamente a equidade vertical, sob a forma de alíquotas crescentes de acordo com a capacidade econômica (ou renda) dos contribuintes; e a equidade horizontal, aproximando o tratamento entre aqueles de mesma capacidade – isso é, tratar os desiguais como desiguais e os iguais como iguais (ao contrário do que é feito hoje).

Em resumo, a Emenda 178 se diferencia das principais propostas na mesa de negociações porque considera que o cerne da reforma é a promoção da justiça tributária, via maior taxação das altas rendas e riquezas, sem deixar de reconhecer a necessidade de simplificar os impostos sobre o consumo e de que a simplificação pode ter potenciais efeitos benéficos sobre o crescimento econômico. Outra diferença importante é a preocupação explícita com a questão da sustentabilidade ambiental, não apenas com a mera sustentabilidade econômica.

Os princípios programáticos da Emenda 178 assentam-se na progressividade da tributação em consonância com os dispositivos constitucionais de “igualdade material tributária” e “capacidade econômica do contribuinte”6 e com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, expressos no artigo 3º da Constituição Federal, a saber: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para cessar as atuais inconstitucionalidades do sistema tributário brasileiro, a Emenda propõe mudanças em favor da justiça tributária, alterando parágrafos do art. 145 (CF/88) com vistas a sublinhar que o sistema tributário nacional, em seu conjunto, não pode produzir efeitos gerais regressivos na distribuição da renda dos contribuintes.

É preciso ressaltar que os consensos alcançados em torno dessa proposta refletem a correlação de forças existente no Congresso Nacional em 2019. Avançou-se no limite do que era possível, para aglutinar os partidos da oposição naquele momento.

O acúmulo de conhecimento acerca da tributação progressiva com sustentabilidade econômica e ambiental, expressa na Emenda 178, foi possível graças à contribuição dos parlamentares e assessores dos seis partidos que formularam a “Reforma Tributária, Solidária, Justa e Sustentável”; dos mais de 40 especialistas, que elaboraram os estudos preparatórios que constituem a formulação técnica da proposta; dos especialistas que integram o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas (NAPP Economia) da Fundação Perseu Abramo; e dos economistas que elaboraram a proposta de Reforma Tributária do Programa de Governo de Fernando Haddad nas eleições presidenciais de 2018.

Entre 2019 e 2021, cresceu o número de subscritores da Emenda 178. A tese da maior tributação da renda e do patrimônio recebeu expressiva contribuição dos parlamentares, que apresentaram mais de 70 emendas aos projetos que tramitam no Congresso Nacional nessa quadra. Em outras palavras, houve acúmulo ao longo dos últimos quatro anos em torno dos debates da reforma tributária no Congresso Nacional, que envolveram a tramitação da PEC 45/2019, da PEC 110/2019, dos trabalhos da Comissão Mista da Reforma Tributária da Câmara dos Deputados, e dos projetos de lei de autoria do Executivo que tratam da criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e da reforma do Imposto de Renda7.

É importante alertar que as diretrizes gerais apresentadas nesse artigo visam, unicamente, a oferecer alternativas e possibilidades de mudança e, assim, a subsidiar a discussão democrática sobre a reforma tributária, especialmente na etapa do debate parlamentar voltado para detalhar esses princípios gerais, por ocasião da elaboração das legislações complementares. A oferta dessas possibilidades técnicas para a decisão política, de modo algum traz qualquer “solução” acabada para a reforma tributária de que o Brasil precisa.

Alerta-se que ainda é preciso avançar em dois temas cruciais, não enfrentados pelos parlamentares e pelos estudos preparatórios da “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável”, resumidos a seguir.

Tributação da economia digital

O primeiro deles diz respeito ao acordo político sobre os pilares da reforma tributária internacional, que institui um mecanismo de realocação dos direitos de tributação dos lucros das gigantes multinacionais, com o propósito de lidar com desafios colocados pela economia digital, e um regime de imposto mínimo global. Inspirados por essa reforma global prevista para ser operacionalizada até 2023, vários países estão introduzindo novos instrumentos como alíquotas mínimas sobre os lucros contábeis das empresas e sobre a variação do patrimônio dos muito ricos, dentre outras medidas antielisão.

Tributação e desigualdade de gênero e raça

O segundo diz respeito às questões de gênero e raça, que vêm ganhando destaque no debate internacional, o que é corroborado pelo recente e relevante estudo divulgado pela OCDE sobre o tema8. Trata-se de discussão de suma importância para se pensar as diretrizes de uma reforma tributária que se proponha como justa do ponto de vista social. O risco inerente ao aprofundamento das desigualdades, entre homens e mulheres, entre brancos e negros, e suas intersecções, deve ser levado em consideração na formulação de políticas públicas.

Essas desigualdades ficam explícitas quando se verifica que as mulheres negras, embora representem 26% da população total, ficam com apenas 14% da renda nacional, percentual inferior aos 15,3% percebido pelos homens brancos do 1% do topo, que corresponde a somente 0,56% da população. Com isto, é seguro dizer que, no Brasil, as mulheres negras compreendem a população que, proporcionalmente, mais paga imposto, haja vista o caráter altamente regressivo do sistema tributário.

Assim, a reforma tributária progressiva, embora esteja longe de, isoladamente, viabilizar o desenho de políticas públicas mais efetivas no combate às desigualdades de gênero e raça e suas intersecções, deve ser vista como um dos instrumentos que atuam nesse sentido.

Reduzir a tributação indireta e ampliar a tributação direta

Os estudos que subsidiaram a Emenda 178 (anfip/fenafisco, 2018 a e b) partem do pressuposto de que a principal mazela da tributação brasileira é que ela é elevada para os pobres e residual para ricos, porque tributa-se muito o consumo e pouco as altas rendas e riquezas. Portanto, o desafio central é redistribuir as bases de incidência dos tributos, reduzindo-se o peso dos indiretos e ampliando-se o dos diretos, além de resgatar a progressividade desses últimos.

Pretende-se, a seguir, apresentar as principais linhas do novo desenho proposto, que contemplam a referida redistribuição das bases de incidência, alertando-se que nem todas as medidas explicitadas a seguir foram chanceladas pelas bancadas de oposição. Os contornos gerais do novo desenho proposto estão organizados nos seguintes temas:

  • Tributação da renda da pessoa física e da pessoa jurídica;
  • Tributação da riqueza;
  • Tributação de bens e serviços e da folha de salários;
  • Tributação ambiental e sobre externalidades na saúde;
  • Financiamento da proteção social;
  • Equilíbrio federativo; e
  • Renúncias fiscais e combate à sonegação.

Tributação da renda da pessoa física

Segundo as estatísticas da OCDE, em 2019, a carga tributária incidente no Brasil sobre a renda, lucro e ganho de capital era de apenas 7,4% do PIB, inferior à média da OCDE (11,3% do PIB). Num ranking com 39 países, o Brasil ocupava a 11ª pior posição.

Essa baixa tributação decorre da existência de diversos mecanismos que conferem tratamento especial à renda do capital e dos mais ricos (por exemplo, a isenção de lucros e dividendos), bem como do fato de a alíquota máxima do IRPF ser de apenas 27,5%. Esses fatores contribuem para que a arrecadação do IRPF no Brasil seja excessivamente reduzida, na comparação internacional: cerca de 3,0% do PIB, ante 8,4% na média dos países da OCDE.

O desafio, portanto, é corrigir as distorções do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), assegurando a progressividade e o cumprimento dos preceitos constitucionais da isonomia e do respeito à capacidade econômica do contribuinte.

Essa tarefa requer, primeiramente, a revisão de benefícios aos rendimentos do capital, tais quais: alíquotas especiais para aplicações financeiras; isenção integral para dividendos; dedução dos juros sobre o capital próprio, dentre vários outros. Tais instrumentos podem (e devem) ser substituídos por outros mecanismos mais coerentes de integração, que eliminem os diferenciais de tributação entre lucros e salários e entre as diferentes formas de renda do capital.

Além da ampliação da base de incidência do IRPF para alcançar os rendimentos do capital no nível pessoal, também se deve avançar pela introdução de uma nova tabela progressiva que, simultaneamente, amplie o limite de isenção e crie nova alíquota máxima. Assim, objetiva-se aumentar a arrecadação no andar de cima, os cerca de 3,6% mais ricos, e reduzir a carga que incide sobre os assalariados de menor renda.

Tributação da renda da pessoa jurídica

No caso da tributação dos lucros das empresas, também é necessário promover uma ampla revisão dos mecanismos que reduzem a base tributável, algo que inclusive abre espaço para se reduzirem as atuais alíquotas do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), que estão desalinhadas internacionalmente. Ou seja, as alíquotas mais baixas passariam a incidir sobre bases mais amplas, após se eliminarem benefícios fiscais injustos e ineficientes.

Isto também passa por reformar os regimes especiais de pequenas e médias empresas (Lucro Presumido e Simples), modernizando a sistemática de cálculo e corrigindo parâmetros mal calibrados que hoje criam brechas para planejamento tributário em benefício principalmente dos mais ricos. Outro desafio é instituir medidas que restrinjam a utilização dos paraísos fiscais por empresas com domicílio no país que possuam subsidiárias localizadas em jurisdições com regimes privilegiados.

Tributação da riqueza

A baixa tributação da riqueza é outra anomalia do sistema tributário. Para enfrentar essa questão, recomenda-se a implantação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), aprovado na Constituição de 1988, para incidir sobre o patrimônio líquido dos 0,28% mais ricos do país.

A Emenda também propõe ampliar a progressividade do Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), pela alteração da Resolução do Senado Federal 09/1992, permitindo-se que a alíquota máxima seja aumentada de 8% para, pelo menos, 20%, conforme recomendação do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

No caso do Imposto Territorial Rural (ITR), recomendam-se mudanças pautadas pela observância do princípio múltiplo da Função Social da Propriedade garantido pela Constituição de 1988 (Art. 5º e Art. 186). Propõem-se novas formas de avaliação do valor e do uso da propriedade rural, pré-requisito para que o imposto, de fato, adquira caráter progressivo conforme o valor da propriedade; e regressivo de acordo com o tipo de utilização.

Outra proposta é alterar o Imposto sobre Propriedade de Veículos (IPVA), ampliando-se sua base de incidência para aeronaves e embarcações, mantendo-se o critério de diferenciação de imposto conforme tipo e uso, sendo que Lei Complementar definirá sua destinação.

Tributação sobre bens e serviços

A Emenda 178 reconhece a necessidade de simplificar a tributação sobre o consumo e faz propostas de mudança que caminham nessa direção. Entretanto, considera que essa simplificação, embora necessária, é insuficiente, sendo imperativo que, simultaneamente e primordialmente, se acabe com a injustiça da tributação excessiva sobre o consumo e reduzida sobre a renda e a riqueza.

É importante mencionar que a tributação progressiva é no máximo tangenciada nas propostas majoritárias que tramitam no Congresso Nacional, seja nas de iniciativa dos próprios congressistas (os substitutivos à PEC 45 e PEC 110) ou do Poder Executivo (PL-3887/2020). Todas elas têm como objetivo central modernizar o sistema de tributação de bens e serviços e preveem manter inalterada a carga desses tributos. Ou seja, as propostas majoritárias pretendem substituir o atual sistema antiquado que tributa em excesso o consumo por outro mais moderno que continuaria tributando excessivamente. Até há alguns dispositivos nas propostas do Congresso Nacional com algum efeito sobre a progressividade – por exemplo, a previsão de um mecanismo de devolução de impostos para os mais pobres ou as menções aos impostos sobre veículos e heranças –, porém excessivamente tímidos.

Tamanha negligência contribui para perpetuar as iniquidades do sistema tributário brasileiro. Basta notar que, no Brasil, a carga tributária sobre bens e serviços representa 14,2% do PIB, com poucos paralelos ao redor do mundo. A média da OCDE é 10,8% do PIB.

A possibilidade de ampliar o patamar de receitas da tributação das altas rendas e riqueza, implícita nas propostas acerca da tributação direta apresentadas anteriormente, abre espaço para a modernização, com redução da carga de tributos sobre bens e serviços.

As linhas gerais dessa reforma compreendem, especialmente, as medidas mencionadas a seguir:

  • Para Distrito Federal, governos estaduais e municipais, a substituição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do Imposto sobre Serviços (ISS) pelo Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) subnacional, com legislação uniforme no território nacional, seguindo-se as melhores práticas internacionais de base de incidência ampla, pleno aproveitamento dos créditos e baseado no destino, e fechando-se o canal para as guerras fiscais travadas entre os entes federativos.
  • No caso da União, recomenda-se a substituição da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do Programa de Integração Social (PIS), pela Contribuição Social sobre o Valor Adicionado (CSVA), um IVA moderno de competência federal que compartilharia a mesma base do IVA-subnacional.

Tributação ambiental e sobre externalidades da saúde

A crise climática está visível por toda parte e ameaça a existência humana. Não por acaso, cresce na sociedade o apelo por práticas que sejam ambientalmente sustentáveis, e o novo sistema tributário deverá dialogar diretamente com essa demanda.

Parte dessa tarefa pode ser cumprida por instrumentos tributários. Por um lado, impondo-se um ônus adicional que desincentive setores e processos intensivos em insumos não renováveis, poluidores e degradadores do meio ambiente. Por outro lado, canalizando recursos e incentivos tributários para ações que promovam a preservação e recuperação dos ecossistemas e estimulem o desenvolvimento de cadeias de produção e tecnologias sustentáveis.

Nesse sentido, propõem-se duas alternativas de instrumentos tributários. A primeira é a transformação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em imposto seletivo, com escopo que vá além dos produtos tradicionais, como os derivados do tabaco, bebidas alcóolicas e combustíveis fósseis, para alcançar outros produtos vinculados a comportamentos danosos ao meio ambiente e à saúde. As alíquotas do IPI seriam então zeradas para a maioria dos produtos, e sua incidência se concentraria nos produtos vinculados às externalidades negativas.

A segunda sugestão é transformar-se a Cide–Combustível em Cide -Ambiental. Nesse caso, a contribuição ampliaria a base de tributação para grandes poluidores, setores intensivos em recursos não renováveis e grandes minerações, e teria vinculação com o financiamento das ações ambientais. Adicionalmente seria criada a Cide-Saúde, com incidência sobre tabaco, bebidas alcoólicas e outros produtos danosos à saúde definidos em lei, sendo que os recursos seriam vinculados à saúde pública.

Tributação sobre a folha de pagamentos

A reforma tributária deve levar em consideração que a arrecadação decorrente da tributação da folha de pagamentos tende a ser corroída por um conjunto de transformações em curso no mundo do trabalho, a exemplo da disseminação da tecnologia e das plataformas digitais de organização do trabalho. Nesse sentido, recomenda-se, especialmente, a redução da alíquota da contribuição patronal sobre a folha de pagamento, compensada por tributos que incidam sobre as altas rendas e riqueza.

Financiamento da proteção social e equilíbrio federativo

Em resumo, o conjunto das mudanças propostas vão na direção de, simultaneamente, tributar menos o consumo e a folha salarial, e mais as altas rendas e riqueza. Para evitar que essa mudança coloque em risco as fontes de financiamento da Educação e das políticas que integram a Seguridade Social (Previdência, Assistência Social, Saúde e Seguro-desemprego) a proposta prevê medidas compensatórias.

Essas medidas incluem tanto a readequação da estrutura de vinculações quanto a instituição de contribuições sociais que incidam sobre dividendos ou adicionalmente sobre altas rendas. Tomando-se, é claro, os devidos cuidados para não aumentar a complexidade do sistema tributário. Para tanto, as contribuições sociais deverão compartilhar a mesma base de cálculo dos impostos pré-existentes e contar com esquemas de pagamento unificado, de modo a não gerar complicações adicionais para os contribuintes.

A readequação da estrutura de vinculações também reflete a preocupação em não gerar perdas nos orçamentos do conjunto dos governos estaduais e municipais, juntamente com a previsão de criação de um Fundo de Equalização para compensar eventuais perdas de receitas durante a transição do ISS e do ICMS para o novo IVA-subnacional. Além disso, para fortalecer o pacto federativo, propõe-se manter o novo imposto sob a competência dos entes subnacionais, assegurando-se maior autonomia orçamentária, e a criação de Fundo Nacional de Desenvolvimento, para custear instrumentos de desenvolvimento regional.

Renúncias fiscais e combate à sonegação 

Recomenda-se a elaboração de legislação específica para ampliar a transparência, efetividade e eficácia dos “gastos tributários” e fortalecer a Administração Tributária pela adoção de instrumentos mais eficazes de combate a evasão, a sonegação e o planejamento tributário abusivo, dentre outros pontos (anfip/fenafisco e outros, 2020).

Nota Final

A “explosão da desigualdade” atingiu níveis ainda mais expressivos no pós-pandemia. Enquanto o establishmentinternacional propõe “gastar mais” e “tributar mais” as altas rendas e riqueza, no Brasil, a agenda prioritária da Reforma Tributária da maioria parlamentar no Congresso Nacional negligencia ou no máximo tangencia a questão distributiva.

Ao contrário, a “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável” parte do pressuposto de que o maior desafio é promover a justiça social, priorizando a alteração da natureza da tributação brasileira, excessivamente concentrada sobre o consumo e, portanto, sobre as classes mais pobres. “Simplificar” o consumo é necessário, mas insuficiente. O fundamental é redistribuir as bases de incidência dos tributos, reduzindo os que recaem sobre o consumo e ampliando os que recaem sobre a renda e a riqueza.

Nesse artigo, apresentaram-se as diretrizes gerais do novo desenho proposto pelos partidos da oposição. O objetivo é oferecer subsídios técnicos para o debate democrático, apontando possibilidades concretas de se promover justiça social, com sustentabilidade econômica e ambiental.

Afonso Florence, Antonio Negromonte, Charles Alcantara, Eduardo Fagnani, Fabiana Lazzarini Afonso, Luiz Gonzaga, Raul Krauser e Rodrigo Orair

Referências

ANFIP/FENAFISCO (2018-A). “A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas”. Eduardo Fagnani (Org.). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. 804 p. Disponível em: http://plataformapoliticasocial.com.br/a-reforma-tributaria-necessaria/. Acesso em: 20 set. 2022.

ANFIP/FENAFISCO (2018-B). “A Reforma Tributária Necessária: Justiça Fiscal é Possível: Subsídios para o Debate Democrático sobre o Novo Desenho da Tributação Brasileira”. Eduardo Fagnani (Org.). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. 152 p. Disponível em: http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2018/12/Livro_completo.pdf. Acesso em: 20 set. 2022.

ANFIP/FENAFISCO e outros (2020). Tributar os super-ricos para reconstruir o País. Disponível em: https://plataformapoliticasocial.com.br/tributar-os-super-ricos-para-reconstruir-o-pais/. Acesso em: 20 set. 2022.

OECD. Tax Policy and Gender Equality: A Stocktake of Country Approaches, OECD Publishing, Paris, 2022.

OXFAM. “A Desigualdade Mata. A incomparável ação necessária para combater a desigualdade sem precedentes decorrente da Covid-19”. Oxfam International, January 2022.

PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

SILVEIRA et al. “Previdência e assistências sociais, auxílios laborais e tributos: características redistributivas do Estado brasileiro no século XXI”. São Paulo: MADE/FEA-USP. Working Paper n. 07. São Paulo: MADE/FEA-USP, 2022.