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A ampliação do seguro-desemprego e a retomada da política de valorização do salário mínimo são algumas das ações necessárias para garantir dignidade aos jovens, ao mesmo tempo que contribuem para a dinamização da economia

A covid-19 desencadeou uma crise sem proporções no mundo e no Brasil. Aqui o governo adotou postura que faz jus à letra dos Racionais, que diz “o ser humano é descartável no Brasil”. Porém, nem todos. Vemos que há uma divisão bastante evidente entre os que podem permanecer em casa e seguir uma rotina de trabalho e lazer e aqueles que precisam sair para trabalhar e não possuem condições acolhedoras em seus lares. Uma exposição cruel dos privilégios e das desigualdades que caracterizam a sociedade contemporânea.

Dentre os segmentos sociais mais afetados destaca-se a juventude. Sua relativa distância dos chamados grupos de risco contrasta com as vulnerabilidades socioeconômicas que marcam a vida da maior parte dos jovens no Brasil. Razões históricas e acontecimentos recentes têm contribuído para o agravamento da condição juvenil em áreas como segurança alimentar, educação, saúde, violência de Estado e violência doméstica, mercado de trabalho, representação política e outras. A superação dos desafios colocados requer ações emergenciais, voltadas sobretudo aos jovens pobres e periféricos, assim como políticas estruturais capazes de alterar as raízes da condição de subordinação social e sub-representação política que caracterizam as juventudes.

A cada dia a insegurança alimentar deixa de ser ameaça e torna-se realidade para milhares de famílias brasileiras, com o agravante de crianças e jovens que não podem mais se alimentar nos refeitórios das escolas ou nos restaurantes universitários. Por isso, é urgente a retomada das compras institucionais do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e a distribuição de cestas básicas para pessoas em situação de insegurança alimentar.

No que diz respeito ao mercado de trabalho, ressalta-se a alta taxa de participação juvenil (quantidade de pessoas em idade ativa que trabalham ou estão procurando emprego), a segunda maior da América Latina, atrás somente do Paraguai. Boa parte desses jovens encontra-se desempregada. A taxa de desemprego entre eles é superior a 20% (chegou a 25% em 2017) e de cerca de 12% para o conjunto da população. Da mesma forma, é maior a rotatividade dos jovens no mercado de trabalho. Dados de 2013 indicavam que a taxa de separação (trabalhadores que se desligam do emprego ao longo de um ano) entre os jovens era de 72,4% e de 41,3% entre os trabalhadores mais velhos.

Igualmente, a juventude constitui maioria entre os trabalhadores informais – e quanto menor a idade, maior a taxa de informalidade. Atualmente, quase 4 milhões de brasileiros auferem renda por atividades associadas aos aplicativos de serviços. Quantos não são os jovens motoristas de Uber, ciclistas do Rappi ou iFood, vendedoras de bolo de pote?

A ampliação do seguro-desemprego e a retomada da política de valorização do salário mínimo são algumas das ações necessárias para garantir dignidade a esses jovens, ao mesmo tempo que contribuem para a dinamização da economia. Para contemplar os trabalhadores informais, dentre os quais os que trabalham via aplicativos, é preciso ainda que as empresas se comprometam a pagar benefícios e direitos trabalhistas – o que dificilmente ocorrerá sem que o Estado se prontifique a regular esses novos mercados. Já no período da reconstrução, deve-se priorizar a contratação de jovens nas iniciativas públicas e privadas do pós-crise, por meio de processos que envolvam qualificação técnica e garantia de renda para a juventude.

No que tange aos jovens estudantes universitários, são necessárias medidas que garantam as condições de permanência nos cursos. No âmbito da educação pública, por exemplo, destacamos a importância da revogação da Portaria 34 (março/2020) do Ministério da Educação (MEC), que cortou milhares de bolsas de pós-graduação em universidades de todo o país, bem como o fim da suspensão orçamentária de 40% dos recursos do Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes). Com relação ao ensino privado é crucial que os estudantes não incorram em multas ou penalidades relativas às mensalidades ou dívidas do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies e P-Fies). Para aqueles diretamente afetados pela crise, seja por redução de salário ou perda do emprego, impõe-se medida de renegociação ou parcelamento de mensalidades. Além disso, faz-se necessária a redução das mensalidades das universidades privadas, sobretudo considerando que as aulas estão ocorrendo em formato de educação a distância (EaD).

Outro tema fundamental da vida das juventudes, sobretudo da juventude negra e periférica, tem a ver com as taxas de violência e encarceramento. São de fato alarmantes as estatísticas de homicídio da população jovem negra, um verdadeiro genocídio. Dados do Atlas da Violência 2019 mostram que das mais de 65 mil mortes violentas no Brasil – aumento de 37,5% entre 2007 e 2017 – 35.783 (54,5%) foram de jovens, sendo 94,4% homens. Considerando o conjunto da população, a desigualdade racial é gritante: 75,5% das pessoas assassinadas no Brasil são pretas ou pardas.

Da população carcerária nota-se que 54% tinham idade entre 18 e 29 anos, segundo dados do Ministério da Justiça de 2017. A propagação do coronavírus coloca suas vidas em perigo, de modo que é urgente a adoção de medidas de prevenção nos presídios. É também necessária a ampliação dos mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para examinar a condição dos mais de 200 mil presos provisórios, que chegam a 30% da população carcerária nacional.

As desigualdades e a violência de gênero são outro aspecto sensível entre as juventudes. As jovens mulheres, geralmente, têm pior remuneração e são mais suscetíveis ao desemprego. São também particularmente sobrecarregadas com atividades de cuidado e reprodução social fundamentais para o funcionamento da economia, porém não reconhecidas como trabalho. Igualmente grave é a situação da violência doméstica. Os dados sobre a violência de gênero e o feminicídio no país têm crescido nos últimos anos. Entre 2007 e 2017 registrou-se aumento de 20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres.

O período de isolamento agrava essa situação, e dados do Brasil e de outros países indicam crescimento nos episódios de violência doméstica. Nesse sentido, é fundamental que os canais de assistência às vítimas continuem funcionando, adaptados à dinâmica da quarentena, por meio de linhas diretas digitais e que estas sejam amplamente divulgadas.

De fato, a condição de “normalidade” para a qual alguns querem retornar é feita de relações de poder essencialmente desiguais – e desumanas. Um dos sintomas é o aumento de problemas associados à saúde mental. Vale lembrar que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio foi a segunda causa de morte de jovens no mundo em 2016, sendo 79% deles em países de renda baixa e média, dentre os quais o Brasil.

As questões aqui levantadas abordam parte dos problemas enfrentados cotidianamente pelas juventudes. Não há dúvida de que se trata de um segmento plural e complexo. Já antes da crise eram necessárias ações e políticas integradas para os jovens. A covid-19 e seus efeitos tornaram essas demandas ainda mais urgentes. Acreditamos que este momento pode e deve ser tomado como ponto de inflexão, devendo suscitar profunda reflexão e elaboração sobre nossa forma de organização social, as desigualdades entre grupos sociais e as relações entre seres humanos e o planeta Terra.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)