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O contexto escolar sentiu muito as condições extraescolares de desemprego, perda da renda e insegurança alimentar. Muitos precisaram abandonar a escola em busca de trabalho

São vários os problemas que afetam a educação no contexto da pandemia da Covid-19. O fechamento emergencial das escolas, que no início teve caráter de recesso e logo adquiriu uma temporalidade mais permanente sem perspectivas de retorno, trouxe grande instabilidade. Se é verdade que não houve tempo para o planejamento, também é fato que houve recusa e negligência de boa parte dos gestores em adaptar o ensino (escolas e comunidade escolar) à modalidade remota.

Com o fechamento, as desigualdades educacionais e socioeconômicas já existentes no país tornaram-se ainda mais cruéis com estudantes pobres.

Os limites de conectividade impediram o devido acompanhamento das atividades escolares. Quantas pessoas precisaram compartilhar aparelhos celulares e quantas sequer possuíam um à sua disposição? Cabe ressaltar que os problemas de conexão com a rede não são exclusividade de zonas rurais, mas existem também nos grandes centros urbanos. Professores também foram impactados com problemas semelhantes e vivenciam uma série de dilemas e precariedades, conforme apontou a pesquisa Sentimento e Percepção dos Professores Brasileiros nos diferentes estágios do Coronavírus. Por conta dessas e outras razões, muitos estudantes foram perdendo os laços com a escola.

O contexto escolar sentiu muito as condições extraescolares de desemprego, perda da renda e insegurança alimentar. Diante disso, muitos precisaram abandonar a escola em busca de trabalho. Há ainda aqueles que precisaram migrar para outros bairros e cidades – e também as famílias que foram para a rua.

Como se sabe, o problema da evasão é uma questão antiga que está longe de ser superada. De acordo com a Pnad 2019, portanto pré-pandemia, mais da metade das pessoas com 25 anos ou mais não havia completado o ensino médio no Brasil (51,2% ou 69,5 milhões). Entre as juventudes, de 14 a 29 anos, 20,2% (10,1 milhões) não concluíram a educação básica – sendo 71,2% deles de negros. Um gargalo é a passagem do ensino fundamental para o ensino médio: o abandono de jovens de 14 para 15 anos quase dobra, passando de 8,1% para 14,1%. A desigualdade de gênero é também muito evidente: 11,5% das meninas e mulheres que abandonaram os estudos no Brasil o fizeram por ter de se dedicar aos afazeres domésticos. Entre os homens, esse percentual foi de apenas 0,7%. Dados da Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE para o mesmo ano de 2019 evidenciam o peso das desigualdades socioeconômicas nas estatísticas: em 2018, 11,8% dos jovens mais pobres tinham abandonado a escola sem concluir o ensino médio, percentual foi oito vezes maior (1,4%) do que entre os jovens mais ricos.

Há uma multidimensionalidade de fatores que há muito contribuem para a evasão de jovens: falta de interesse nas escolas, ausência de transporte escolar, migração e, no caso das mulheres, gravidez na adolescência, demandas de cuidado e afazeres domésticos. Conforme já apontado em texto anterior, as mulheres dedicam, em média, 8 horas semanais a mais de trabalho doméstico que os homens. Globalmente, o estudo Tempo de Cuidar, da Oxfam, apontou que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam diariamente 12,5 bilhões de horas ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, que corresponde a mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo.

Na pandemia, conforme apontou a pesquisa Sem Parar: O trabalho e a vida das mulheres na pandemia, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém durante a pandemia (filhos, idosos, pessoas com deficiência ou outras crianças). Dessas, 42% não têm apoio externo de profissionais, instituições ou vizinhos. Entre as mães, metade (49%) passou a dedicar mais tempo ao acompanhamento dos filhos de até 12 anos em tarefas escolares online.

Um estudo da Fundação Malala examina o contexto atual com base nas consequências da epidemia de Ebola na África em 2014 e estima que cerca de 20 milhões de jovens mulheres podem se ausentar permanentemente da escola no pós-pandemia da Covid-19.

Quais as condições de dedicação escolar das meninas que precisam cuidar de irmãos, filhos pequenos, familiares idosos e doentes e ainda contribuir com a renda familiar?

A evasão escolar é, assim, mais um dos traumas da pandemia da Covid-19. Tem gênero, raça e endereços bem marcados, com impacto sobre a vida das juventudes periféricas do campo e das cidades e com um grave resultado coletivo que se estenderá por muitas décadas.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutora em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)