Colunas | Opinião

Vivemos um momento de discussão sobre as massas, a relação entre dirigentes e dirigidos, sobre autonomia da classe trabalhadora. Talvez Rosa possa nos ajudar nessas reflexões

Rosa Luxemburgo olhou assombrada aquela revolução, a impressionante movimentação de massa. A Rússia em fogo no início do século 20. Trabalhadores em ação. Nascia ali a inspiração para a crença profunda nas massas. Primeira fase da Revolução Russa. Dali tira lições essenciais para suas teses em torno da prioridade da ação das massas em relação ao partido. Sua vida será marcada para sempre pelo seu insight sobre aquele momento único, ao menos para ela. A luta de classes é o motor da história. Operários e burgueses se enfrentando nas relações de produção independentemente da existência ou não do partido proletário. Sua tese: não é o partido socialista que cria a luta de classes, é a luta de classes que cria o partido socialista. A consciência de classe virá da luta.

Vivemos um momento de discussão sobre as massas, sobre a relação entre dirigentes e dirigidos, sobre acreditar ou não na autonomia da classe trabalhadora, sobre a possibilidade ou não da manipulação dela. Talvez a história de Rosa possa nos ajudar nessas reflexões. Ou não. É indiscutível: a reflexão sobre as massas permeou a vida e a obra dela.

Lembro da relação entre ela e Lênin.

As massas e seu papel na história, sempre presentes.

Há autores cuja ênfase recai num encontro teórico-prático fundamental entre os dois. Até porque Lênin nunca deixou de considerá-la uma grande revolucionária, águia da revolução. Relatei, no entanto, no último texto sobre ela, publicado nesta Teoria e Debate, Rosa Luxemburgo: revolução é liberdade e democracia, a censura feita por ele ao texto dela sobre a Revolução Russa, na qual se encontram ácidas críticas ao autoritarismo da fase inicial da União Soviética, liderada por ele e por Trotsky, os dois dura e nominalmente criticados por ela.

Não estou, portanto, entre os partidários de uma relação harmoniosa entre ela e Lênin. Minhas leituras me convenceram de uma divergência histórica e profunda, os dois certamente no campo da luta revolucionária. Prefiro a leitura de Paul Levi. Ele fez publicar o texto dela sobre a Revolução Russa, recusando-se a queimá-lo como queria Lênin, e falava das antigas, históricas divergências entre os dois.

Desde 1905, primeira fase da Revolução Russa. Dali, ela tira lições essenciais para suas teses em torno da prioridade da ação das massas em relação ao partido. Abri esse texto com essa noção. Vamos convir: talvez Lênin, nas condições da Rússia atrasada, tivesse razão em ser um jacobino, liderar um partido de vanguarda, de homens decididos, e levar a revolução adiante. O que virá adiante, outra história, e trágica.

Rosa, vamos nos entender, tinha visão diferente. O jacobinismo tinha um conteúdo burguês, na opinião dela. Na revolução socialista, as massas operárias se autodeterminam. O papel do partido socialista seria precisamente o de abolir a velha contradição entre dirigentes e a massa. Uma compreensão bem distinta da defendida por Lênin. O papel dos dirigentes e do partido socialista é o de contribuir para a conscientização das massas quanto ao seu papel histórico-revolucionário, despertar a capacidade do proletariado em se autodeterminar, em agir por si mesmo. Compreensão muito diversa da proposta leninista, por evidência. Lênin pensou e organizou um partido de quadros.

Rosa procurou aprofundar, em seu tempo, a questão da consciência das massas. Fazia distinção entre consciência teórica latente e a consciência prática e ativa. A primeira, podendo também ser chamada também de consciência teórica possível, determinava o movimento operário durante o período de dominação do parlamentarismo burguês. A consciência prática e ativa surge no processo revolucionário, quando a própria massa, e não somente o partido e seus dirigentes, irrompe no cenário político e social, formando a consciência crítica e revolucionária na própria práxis, como ocorreu, segundo ela, na Revolucão Russa de 1905, como teria ocorrido na Comuna de Paris.

É impossível negar, portanto, a crítica de Rosa aos revolucionários russos quanto à relação com as massas. Desde sempre. Ela não tergiversa: não é correto colocar o partido no lugar das massas, superestimar o papel da organização. A criação do sujeito revolucionário necessita de organização, mas é inaceitável a permanente separação entre partido e massas, entre dirigentes e massas dirigidas. Isso teria, teve, consequências trágicas para a história da revolução socialista, as quais não podem ser reduzidas a personagens singulares. O stalinismo é visto às vezes como resultado apenas da maldade de um homem. Não é.

Confiança nas massas, em sua capacidade, na possibilidade de crescimento delas na ação, de, em movimento, adquirir consciência de classe, ajudada pelo partido revolucionário. Era a marca dela. Mas, veio o terremoto, o apocalipse, o inferno, o espantoso 4 de agosto de 1914. Como se tudo ruísse, como se todas as convicções alicerçadas por anos fossem ao chão, incluindo a confiança nas massas. Como se tudo aquilo, aquela crença na capacidade das massas de se autodeterminarem, fosse uma rematada ilusão.

O Reichstag se reúne para discutir e aprovar os fundos necessários para a sangrenta Segunda Guerra Mundial, deflagrada dias antes. O Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) era uma referência mundial da luta comunista, da perspectiva internacionalista. Naquele 4 de agosto, mais de cem deputados da bancada social-democrata vota a favor do orçamento de guerra e da “defesa da pátria”. O internacionalismo proletário, do qual o SPD era um símbolo, fora ao chão.

Um choque para Rosa, um sofrimento profundo, uma alma dilacerada diante dessa decisão. Escreve o Folheto Junius, presa, em 1915. Só será publicado em abril de 1916. Uma condenação densa e indignada ao apoio do partido à guerra e um lamento diante da adesão entusiasmada do proletariado alemão à mortandade, à luta sangrenta entre as classes trabalhadoras de tantos países.

Em seu texto, também conhecido como A crise da Social-Democracia Alemã, solta seu verbo inflamado:

e a carne de canhão que subiu nos trens em agosto e setembro apodrece nos campos de batalha da Bélgica e dos Vosgos enquanto os lucros crescem como joio entre os mortos, os negócios florescem sobre as ruínas, as cidades se transformam em escombros, países inteiros em desertos, aldeias em cemitérios, nações inteiras em mendigos, igrejas em estábulos, sem vergonha, sem honra, nadando em sangue e espalhando imundície: assim vemos a sociedade capitalista, besta vociferante, orgia de anarquia, emanação pestilenta, devastadora da cultura e da humanidade.

E no meio dessa orgia sangrenta, ocorre uma tragédia mundial: a social-democracia alemã capitulou. Como deve ser duro para ela dizer: agora, milhões de proletários estão caindo no campo da desonra, do fratricídio, da autodestruição, com a canção do escravo em seus lábios.

O proletariado alemão decidiu entusiasmado seguir para a guerra: essa a tristeza, a decepção. Não obstante ela queira transmitir otimismo durante o texto, aquela confiança inabalável nas massas esvaiu-se.

A classe operária abandona a luta de classes revolucionária na Alemanha, alia-se à burguesia e seus desejos expansionistas, entrega seus corpos à carnificina, deixa de lado sua tradição de luta social-democrata. Não se trata apenas da traição dos dirigentes, dos deputados do SPD. Trata-se do envolvimento da classe operária, e esse é o grande sofrimento de Rosa, independentemente da indignação com os deputados e chefes do SPD. Não esmorece, condena duramente o partido.

Sabe, e diz no Junius, a história seria outra fosse diferente a posição do SPD: a voz do nosso partido teria caído como um balde de água fria sobre a embriaguez chauvinista das massas. Mais: teria protegido o proletariado inteligente do delírio, teria dificultado ao imperialismo a tarefa de envenenar e obscurecer a mente do povo.

Mas o proletariado alemão e as massas de toda a Europa foram envenenadas. “Guerra contra a guerra” seria a palavra de ordem correta dos partidos socialistas. Aqui, o nó górdio. A demência não terá fim até que os operários da Alemanha, da França, da Rússia e da Inglaterra despertem de sua embriaguez e afoguem o coro brutal dos agitadores belicistas e o grito rouco das hienas capitalistas no poderoso grito do trabalho: “proletários de todo o mundo, uni-vos!” – era Rosa e sua tentativa política de enfrentar a derrocada, tão evidente.

Ao final, como dirigente, ela desfia teses sobre as tarefas da social-democracia internacional, começando com a trágica afirmação de que a guerra mundial aniquilou a obra de 40 anos do socialismo europeu, e propondo no final das teses a criação de uma nova Internacional operária.

Finaliza, quando fala nos princípios norteadores, defendendo ser missão imediata do socialismo a libertação espiritual do proletariado da tutela da burguesia, que se expressa através da influência da ideologia nacionalista. O palavrório oco do nacionalismo é um instrumento de dominação burguesa – afirma.

Afinal, essa guerra resultou em mais de 20 milhões de mortos, 60% mais ou menos da classe trabalhadora que foi entusiasmada às armas. Um banho de sangue devido à embriaguez ideológica das massas, envolvidas nas teses de defesa de suas pátrias, e na verdade batalhando nas trincheiras das lutas intercapitalistas e interimperialistas.

Rosa, na verdade, na verdade, não havia percebido os sinais da mentalidade conservadora na própria classe operária alemã desde antes da guerra. Com o chauvinismo da classe trabalhadora, com o envolvimento entusiasmado dela na luta fratricida, Rosa dá adeus às ilusões, embora sustente ainda um discurso de combate, porque de sua obrigação como dirigente comunista.

Havia de reconhecer: no momento decisivo, quando a classe operária era mais necessária para se opor à luta entre irmãos, para afirmar o internacionalismo, abandonou a luta de classes revolucionária, rendendo-se à política imperialista da burguesia alemã.

Rosa só vai sair da prisão no fim de 1918, pouco antes de seu assassinato. Será posta diante de um duro dilema. Via toda a agitação de uma parcela das massas, sobretudo da juventude, o entusiasmo revolucionário espartaquista. Participa, escreve, incentiva a luta revolucionária, fazia imprecações contra a traição de seu antigo partido. Olhava tudo, no entanto, com um olho que ri, outro que chora, como ela própria dizia. O ímpeto espartaquista alegrava-a e preocupava-a. Tenta ainda ponderar, limitar o esquerdismo. Sem sucesso.

A direita avançava, os espartaquistas tinham certeza da vitória, entusiasmo crescente, a classe operária e suas principais organizações distantes. Ironicamente, havia muito de leninismo na ação dos jovens espartaquistas, embora não se possa em Lênin apontar uma subestimação da correlação de forças. Avançava quando as condições permitiam. Os espartaquistas faziam-no sem considerar o entorno, a disposição de forças políticas no cenário alemão, francamente desfavorável a eles.

E Rosa?

Cadê as massas? – era sua angustiante pergunta.

E como abandonar seus jovens companheiros? – a mais dura inquietação.

Sua tragédia final, ao perder as ilusões com as massas, foi embarcar numa luta sabidamente inglória, luta percebida por ela como sem chances de vitória.

Resolve optar pela coerência radical dos princípios. Embarcar numa luta sabendo-a previamente derrotada. Era, para sua consciência revolucionária, para sua formação moral, a única saída.

Abandonar seus companheiros nesse momento seria uma baixeza.

Assim ela enxergava aquela tragédia anunciada.  Preferível morrer a recuar num momento como aquele. Deixaria um exemplo honrado, revolucionário. Sacrificada no altar da revolução. Distante das massas, celebradas por ela durante a maior parte da vida.

Um olhar frio, à distância, poderá fazer a crítica.

Falar, quem sabe, tenha faltado a ela, uma visão política, uma análise da correlação de forças, análise concreta da situação concreta, a Lênin.

Mas nada é simples nas encruzilhadas revolucionárias. Numa tempestade como aquela, numa conjuntura tão decisiva, na qual o principal partido social-democrata do mundo apresentou-se pressuroso na defesa do capitalismo, onde havia setores, minoritários fossem, dispostos à luta pelo socialismo, ela, com seu espírito crítico, sabia qual era a correlação, tinha consciência da inviabilidade política revolucionária daquela empreitada. Outra vez, as massas não estavam no jogo da revolução. Um olho que ri, outro que chora, e ela não sucumbe à ideia de recuar, dar um passo atrás, e com os dois olhos abertos, altiva, caminha para morte digna, a nos dar lições eternas.

Referências bibliográficas

ETTINGER, Elzbieta. Rosa Luxemburgo: uma vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.

GERAS, Norman. A Actualidade de Rosa Luxemburgo. Lisboa: Edições Antídoto, 1978.

LOUREIRO, Isabel Maria. Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária / Isabel Maria Loureiro. 2ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: Editora Unesp; Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. A expressão “um olho que ri, outro que chora” é tirada dessa obra essencial sobre Rosa, além de tantas outras inspirações.

VARES, Luiz Pilla. Rosa, a Vermelha: vida e obra de Rosa Luxemburgo /biografia [por] Luiz Pilla Vares. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Busca Vida, 1988. (Coleção sempre viva; v. 1).  As referências ao Folheto Junius são extraídas de capítulo dessa publicação.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 v.), entre outros