Estante

De volta à Estação Finlândia O diário de uma viagem fantástica de quase três meses, que começa em Paris, passa pela Alemanha, Lituânia, Polônia, Rússia e vai até Pequim e Hong Kong, transformado em um livro deliciosos, nos coloca frente a frente o presente e o passado. As frustrações e dúvidas do autor desafiam seu compromisso de historiador e militante, que ainda se permite sonhar com um futuro no qual muitos não acreditam mais.

Sorvi, egoisticamente, essas aventuras e reflexões no início de 1993, bebericando caipirinhas e cervejas nas praias de Ubatuba. Empenhei-me, depois, em convencer Daniel em transformar o diário em uma matéria para T&D, publicada no nº 21. O artigo transformou-se em um livro ampliado e enriquecido capaz de envolver leigos e especialistas.

Daniel Aarão Reis, revolucionário da velha guarda, tem uma incrível capacidade de se manter permanentemente atualizado. Possui uma visão crítica aguçada, temperada em longos anos de militância, exílio, luta, estudos e palestras sobre revoluções e socialismo. O real, o teórico e o sonhado por muitas gerações. A crítica, a arma da crítica, uma das principais ferramentas do pensamento marxista, é um recurso que Daniel maneja com maestria, principalmente em A revolução faltou ao encontro. Aliás, o temor à crítica foi uma das causas do fracasso do socialismo real. Em todos os processos revolucionários, vitoriosos ou não, predominou muito mais a crítica pelas armas com todos os conhecidos desvios e fracassos.

O livro é marcado por registros do cotidiano cotejado por comentários de fator históricos passados ou recentes.

O hippie, em Berlim, explica a Daniel e Diêda, sua companheira, que um prédio velho, aparentemente abandonado, ornamentado com cores estranhas e alegres, está invadido por squatters. A vigilância policial é constante. Nessa conversa, o hippie fala de uma Berlim onde a vida era mais livre, apesar do muro, ou por causa do muro que obrigava as autoridades a uma tolerância maior. Há uma certa nostalgia do muro entre os ocidentais e os orientais.

A senhora Hanna, em Varsóvia, que nunca foi filiada ao PC e nem tem saudades do seu domínio, está desorientada com as dificuldades que surgiram, bastante semelhantes aos problemas brasileiros: recessão, desemprego, degradação dos serviços públicos, etc., que recebem palmas dos liberais enquanto a instabilidade se agrava.

Natacha, em São Petersburgo que já foi Petrogrado e Leningrado de tantas batalhas heróicas, é uma bolsista que recebe quatro dólares por mês, irmã de um metroviário sindicalista que ganha cem dólares por mês e são filhos de um engenheiro ferroviário e de uma médica que juntos recebem cerca de 25 doláres mensais. Como conseguem sobreviver?

A passagem pela histórica estação Finlândia, onde Lenin desembarcou para dirigir a Revolução de Outubro, provoca algumas reflexões capazes de desmistificar até as fantasias de renitentes leninistas que ainda sonham com o velho modelo de revolução proletária.

Os diálogos e as impressões estão registrados de uma forma envolvente e coloquial que transformam pessoas distantes e desconhecidas em confidentes e amigos.

Por outro lado, o achaque de guardas que vendem doláres e resolvem os problemas de sua alçada desde que recebam algum "por fora" revelam a falência do que já foi a segunda maior potência mundial.

A viagem dentro da viagem pelo expresso Transiberiano ao longo de sete dias e sete noites, regada de conflitos entre russos e chineses, até a festejada (pelos orientais) chegada na fronteira chinesa, marcada pela abundância e variedade de mercadorias nas lojas e restaurantes, contrasta com a miséria e o desabastecimento que marcam a ex-toda-poderosa União Soviética.

Pedalando em uma bicicleta pelas ruas de Pequim, Daniel mais uma vez revela seu apurado senso crítico quando tenta entender o quebra-cabeça chinês. Recorda que quem visita a China durante uma semana tem a tentação de escrever um livro, se a visita durar um mês sentirá falta de segurança mas se a permanência passar de um ano, esse visitante desistirá de escrever qualquer coisa diante da complexidade de sua história e de seu cotidiano. E conclui dizendo que não está escrevendo sobre a China, "mas sobre o que os olhos de um brasileiro pensam ter visto por lá".

Imaginem um brasileiro que tem de fazer suas necessidades à vista de todos, agachado em um vaso sanitário turco. A única separação que se preserva é a entre os sexos. Pelo menos não tem que passar essa humilhação na frente de mulheres.

Impressiona-se com a educação chinesa e de nunca ter visto um único bêbado na rua, ao contrário da Rússia que , além de mal-educados, era muito comum encontrar pessoas com o rosto todo marcado por tombos ocorridos durante bebedeiras homéricas e freqüentes. Daniela e Diêda nunca foram achacados ou arrochados na China.

Impressionado pela intensa atividade econômica que pode ser observada a olhos vistos, e que é descrita de maneira sucinta, porém capasz de impressionar qualquer pobre mortal, Daniel registra sua certeza de encontrar cada vez mais mercado assim como sua preocupação em encontrar ou tropeçar em algum socialismo.

Não consegue. Melancolicamente, anota que o socialismo, naqueles países, "está morto e bem morto. Na Rússia, amesquinhada e torturada pelas privações, e na China, empanturrada pela abundância da prosperidade...morreu por não ter sabido estruturar uma outra proposta de ser e viver que o tornasse capaz de suportar a pena da falta e o risco do excesso."

E concluiu: "O Bezerro de Ouro triunfou. Por enquanto. Quem quiser aderir, é só ficar de quatro."

Mas, como bom revolucionário , incorrígivel, imprescindível, como diria Maiakovsky, finaliza:"Os inconformados, os intratáveis, os indignados, os que não gostam do bom-senso, os loucos, de todas as loucuras  voltarão a se levantar, braços ao alto, reinventado passos, tentando um novo equilíbrio arriscando a dor, no fio da navalha condenados a refazer uma outra aventura."

Paulo de Tarso Venceslau é membro do Conselho de Redação da T&D