Economia

A campanha Lula-presidente deu uma resposta frágil ao real. Deixou-se surpreender pelo impacto da nova moeda, fez críticas que não puderam se sustentar e passou uma imagem de desorientação

Há muitas questões a serem avaliadas na condução da campanha do PT e da Frente Brasil Popular em 1994, desde a construção da candidatura Lula, sua combinação com as campanhas estaduais majoritárias e proporcionais, até o discurso nas eleições, a diferenciação com o PSDB etc. E muito pode ser dito para explicar a vitória de Fernando Henrique Cardoso: a constituição da mais ampla aliança conservadora que já se formou neste país, o enorme poderio econômico reunido a partir daí, a transformação de quase toda a mídia em instrumento de campanha, bem como a exploração dos preconceitos do eleitorado contra Lula, e a possibilidade de atrair votos não tão conservadores para Fernando Henrique Cardoso graças ao seu passado. É conveniente ampliar a análise até o quadro internacional, adverso para a esquerda.

Mas uma questão é quase consenso: o Plano Real teve uma importância decisiva. Até a mudança da moeda, Lula liderava as pesquisas, e se encaminhava para vencer as eleições, talvez já no primeiro turno. Aliança conservadora, poder econômico, utilização da mídia, preconceitos e conservadorismo do eleitorado, confusões quanto à verdadeira natureza da candidatura FHC, influências do quadro internacional não eram suficientes para garantir a vitória do candidato do conservadorismo. Era necessário um mote para transformar toda esta força econômica, social e política em votos, e esse mote foi o Plano Real.

A partir desta primeira constatação quase consensual desdobra-se uma segunda avaliação, feita muito amplamente: a de que a resposta da candidatura Lula ao real foi frágil. Nossa campanha se deixou surpreender pelo impacto da nova moeda; fez críticas que não puderam se sustentar, passou uma imagem de desorientação, e afinal a posição não ficou clara. A imprensa pôde fazer interpretações do tipo "Lula quer continuar o Plano Real", o que naturalmente reforçava Fernando Henrique. Além disso, não foi possível apresentar com clareza e de forma razoavelmente concreta uma proposta de combate à inflação do PT e da Frente Brasil Popular, o que contribuiu para o eleitorado formar a imagem de que "Lula não tem programa" (percepção injusta, pois Lula tinha muito mais programa e propostas do que Fernando Henrique - mas a questão é que no tema que dominou as eleições, o da inflação, a posição da nossa candidatura de fato não ficou clara).

Por outro lado, há quem avalie hoje que, de qualquer maneira, teria sido impossível fazer frente ao impacto do real, e que a derrota era certa, independentemente do que a candidatura Lula pudesse ter feito ou dito. É verdade que a dificuldade era muito grande, e não podemos ter certeza se seria possível ou não evitar a derrota. Mas é razoável supor que um tratamento mais seguro da questão da inflação, do Plano Real e das nossas alternativas, bem como de outros aspectos da campanha, poderia ter garantido o segundo turno, e que aí o quadro seria muito menos desfavorável.

É certo que o Plano Real foi decisivo para a vitória de FHC, e que não conseguimos responder adequadamente ao desafio que representou. E aí cabe perguntar por que nossa resposta foi tão inadequada. Afinal, desde fins de 1993, Fernando Henrique Cardoso vinha construindo sua candidatura, às claras, com base em um plano de estabilização. E embora não fosse possível antecipar com exatidão qual seria o impacto que a queda da inflação teria sobre o eleitorado, pelo menos desde abril, quando se comprovou que o mecanismo da URV funcionava, era perfeitamente possível identificar na introdução da nova moeda a única grande ameaça à candidatura Lula (análise feita por muitos participantes da direção da campanha Lula). Por que não tiramos as conseqüências devidas disso?

A proposta alternativa

Uma primeira conseqüência necessária - é ainda mais fácil dizê-lo a posteriori, mas isto foi dito por muitos na época - era que tínhamos de preparar uma proposta de combate à inflação da candidatura Lula que fosse a mais concreta possível, e que, ao combinar estabilização de preços com distribuição de renda, desenvolvimento e defesa da soberania nacional, tivesse a marca democrática e popular do nosso programa. Esta proposta serviria de base para as críticas que faríamos ao Plano Real, e nos permitiria apontar as suas deficiências sem que passássemos a idéia de que a questão da inflação não nos preocupava.

No nosso Programa de Governo a questão da inflação era tratada corretamente como um dos principais problemas da população, responsável em grande parte pela miséria, pela criação de uma verdadeira "segregação monetária", entre os que tinham acesso à "moeda indexada" e os que não contavam com esta proteção para seu poder de compra (a grande maioria da população). Além disso, fazia-se uma análise das causas da inflação brasileira, e apontavam-se alguns critérios gerais para seu enfrentamento. Na versão do Projeto de Programa de Governo, que serviu de base para o debate do 9º Encontro Nacional, a análise da questão da inflação concluía com uma explicação de que só poderíamos apresentar uma proposta mais concreta mais adiante, quando o quadro econômico no momento da posse do novo presidente estivesse mais claro. Mas no próprio 9º Encontro esta observação foi retirada, justamente porque avaliou-se que ela enfraquecia nossa posição no debate. Naquele momento, trabalhava-se na Coordenação do Programa de Governo e nos grupos de economistas com a idéia de apresentar, ainda antes da introdução da nova moeda, uma proposta mais concreta de combate à inflação. No mês de maio, inclusive, Lula insistiu na importância de se preparar uma proposta de estabilização para sua candidatura.

De fato, desde fins de 1993, os grupos de economistas que participavam da elaboração do Programa de Governo Lula - 94 discutiam alternativas de combate à inflação, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas, como é natural entre economistas, havia muitas divergências.

Na minha opinião, dentre as várias propostas que chegaram a ser debatidas, duas chegaram a ter maior estruturação. Uma, a apresentada de forma mais completa pelo professor Paul Singer, é a proposta que está resumida no artigo A batalha decisiva, em T&D nº 25. O seu eixo é o estabelecimento de mecanismos de negociação de preços, salários e tributos, ao longo da cadeia produtiva (através das câmaras setoriais), e por meio de um "foro nacional de negociações" com participação das entidades nacionais de trabalhadores e empresários, possivelmente incluindo representantes do Congresso Nacional e de entidades da sociedade civil. Esta visão adota uma lógica gradualista no combate à inflação.

O professor Paul Singer foi quem deu maior desenvolvimento a uma versão desta proposta-, mas a idéia de um combate gradualista a inflação, a partir das câmaras setoriais, tem bastante influência no partido, e é incorporada em graus diversos por vários economistas do PT. Por exemplo, o plano de estabilização aprovado em fins de 1992 pelo Diretório Nacional, elaborado sob a coordenação de Aloizio Mercadante, tinha muitos elementos desta visão. No entanto, ela sempre foi muito polêmica no partido; sempre houve muitas dúvidas quanto a sua viabilidade. O plano de 1992 foi um dos temas de dissenso nos debates anteriores ao 8º Encontro Nacional do PT, em 1993. Foi criticado, entre outros, por César Benjamin, e Odilon Guedes e Sergio Amadeu, em artigo no jornal Brasil Agora.

Já em 1994, quando o debate do tema foi retomado, realizou-se em 24 de junho uma discussão específica sobre o papel das câmaras setoriais, com a participação de economistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. E chegou-se a uma conclusão geral (resumida na reunião por Aloizio Mercadante) de que as câmaras setoriais são um instrumento importante para a democratização da vida econômica (como foi aprovado no 9º Encontro), podem contribuir para o controle social sobre os oligopólios, assumir um papel fundamental na implementação da política industrial etc, mas só têm condições de ser um instrumento complementar, ainda que importante, em uma política de estabilização, e não um instrumento central. Isto por várias razões, e inclusive pelo tempo necessário para generalizar câmaras setoriais com um mínimo de representatividade no conjunto do país.

Assim, mesmo entre os economistas mais identificados com a linha de combate à inflação apoiada nas câmaras setoriais, havia um acordo majoritário em que este mecanismo não podia ser o eixo da proposta. Segundo o meu conhecimento, o único companheiro que acompanhava inteiramente o ponto de vista de Paul Singer era Guido Mantega.

A outra proposta que chegou a ser mais desenvolvida, no período que antecedeu o lançamento do real, surgiu de uma série de discussões realizadas sobretudo no grupo de economistas de São Paulo. O ponto de partida foram algumas idéias de Paulo Nogueira Batista Jr. sobre o aspecto monetário de um plano de estabilização, e a necessidade de desenvolver-se uma alternativa às visões de dolarização muito influentes na equipe econômica do governo. Estas idéias foram apresentadas por Paulo Nogueira em entrevista à T&D nº 23. Em discussões posteriores, a proposta foi bastante modificada e ampliada; uma versão já retrabalhada foi apresentada para os membros do Diretório Nacional do PT na véspera do 9º Encontro Nacional. No início de junho, atendendo à solicitação já mencionada de Lula, um grupo de economistas de São Paulo e do Rio de Janeiro (André Urani, Eduardo Suplicy, Luiz Carlos Merege, Mário Carvalho, Odilon Guedes, Paulo Guilherme Corrêa, Paulo Nogueira Batista Jr. e eu) apresentou o texto "Estabilização com Crescimento e Distribuição de Renda", inicialmente na reunião da Comissão Executiva Nacional de 10 de junho, e posteriormente na reunião do Diretório Nacional de 26 de junho. Sua idéia central era a necessidade de um ataque frontal à inflação brasileira, e de uma ação simultânea e articulada em várias frentes: fiscal, monetária, cambial e política de rendas.

Não houve condições de debatê-lo seriamente, de forma organizada, nem no grupo de economistas, nem nas instâncias de direção (como ocorreu, igualmente, com as outras propostas apresentadas). Diversas críticas foram no entanto apontadas, algumas bem fundamentadas, outras completamente delirantes (por exemplo, falou-se que a proposta seria "monetarista" - questão que recomenda que se discuta o que se entende por "monetarismo", pois é evidente que esta crítica confunde "monetarismo" com inclusão das questões fiscais e monetárias num plano de combate à inflação).

O fato é que ficou claro, nas discussões realizadas, que nenhuma das propostas de estabilização apresentadas naquele momento tinha um apoio majoritário entre os economistas. As várias posições não eram, aliás, obrigatoriamente excludentes, como observou mais de uma vez o professor Paul Singer, com razão. Mas a composição entre elas para a construção de uma nova proposta mais abrangente exigiria um tipo de discussão nos grupos de economistas e uma participação da direção do partido ou da campanha, que não aconteceram. Aí pesou a falta de um debate sobre questões econômicas mais permanente e sistemático no PT, tanto entre seus economistas quanto nas suas direções. Se essa tradição existisse, certamente teria permitido um acúmulo que nos colocaria em uma situação muito melhor para enfrentar desafios como o que tivemos na campanha presidencial.

Diante das dificuldades dos grupos de economistas de chegarem a uma proposta mais consensual de combate à inflação, a Comissão Executiva Nacional do PT e a Coordenação de Campanha terminaram se orientando para a linha de reforçar a denúncia do aspecto eleitoreiro do Plano Real, e de trabalhar para que a inflação não ocupasse um lugar central no debate eleitoral. A idéia foi sintetizada em "evitar que adotássemos a agenda do adversário", como se a questão da inflação estivesse sendo introduzida artificialmente na campanha, e como se esta não fosse uma preocupação central da população.

Para que a idéia de secundarizar o debate da inflação prevalecesse nas instâncias dirigentes da campanha, contudo, contribuíram de forma decisiva os graves erros de análise do significado do Plano Real, e do seu impacto provável, cometidos neste momento por alguns dos principais economistas do partido.

Erros de análise

Muito teríamos a dizer sobre os erros de avaliação do Plano Real cometidos por dirigentes ou economistas do PT. Quando o plano foi lançado, com o nome de FHC-2, em dezembro de 1993, muitos não o levaram a sério (e nisto me incluo). Poucos eram os que acreditavam naquela altura que do desacreditado e desajeitado governo Itamar pudesse vir algum programa consistente. Alguns tendiam a não identificar na gestão de FHC uma ameaça também porque ainda viam o PSDB como um possível aliado. A ilusão com a relação com o PSDB, aliás, tema de polêmica desde o 8º Encontro Nacional do PT, teve um papel importante em desarmar o partido para a disputa eleitoral de 1994.

Mas desde as vésperas do lançamento da URV, isto é, desde fins de fevereiro, a preocupação com a ameaça eleitoral que o Plano podia representar começou a se fazer sentir, e a partir do mês de abril, quando foi constatado que o mecanismo da URV teria eficácia, esta preocupação aumentou. De modo geral, desde esta época, todos sabiam que com a introdução da nova moeda a inflação teria uma queda brusca.

Duas posições particulares, no entanto, merecem registro.

Uma, a do professor Paul Singer. Em diversas discussões, Singer manifestou a opinião de que sem o estabelecimento de mecanismos de negociação de preços e salários a inflação cairia muito, mas voltaria a subir rapidamente. Esta avaliação apontava para uma inflação em ascensão ainda antes do 1º turno das eleições, o que naturalmente contribuiria para uma redução do impacto eleitoral do Plano Real.

Outra posição que deve ser destacada é a que foi defendida pela professora Maria da Conceição Tavares; a companheira teve grande influência, tanto por sua grande autoridade, quanto pelo modo superenfático de argumentar que em geral utiliza. Na véspera da reunião do Diretório Nacional de 5 de março, isto é, a primeira reunião realizada após a introdução da URV, Conceição Tavares expôs vigorosamente para alguns dos economistas do partido a avaliação de que o mecanismo da URV não funcionaria, devido à tendência divergente das curvas dos três índices que a o compunham; chegou a prever uma inflação em URV de 7% na primeira semana de março e de 15% no mês, o que certamente provocaria a implosão do Plano Real. Esta posição, um pouco mais matizada, foi publicada na Folha de S. Paulo de 6 de março, no artigo "A turbulência dos preços com três moedas".

Não há dúvidas de que o mecanismo da URV tinha problemas, o que explicava a existência real de inflação em URV (de início negada até como possibilidade pelo governo). Mas a posição da professora Conceição Tavares exagerava muito estes problemas. Nos quatro meses da sua duração, a inflação acumulada em URV ficou em torno de 10%, dependendo do índice escolhido para o cálculo. Apesar dos problemas, o Plano não estourou e foi possível fazer a passagem para o real, mesmo que não nas melhores condições.

A posição da professora Conceição Tavares no início de março teve um efeito maior porque serviu de base a uma exposição de Aloizio Mercadante para o Diretório Nacional, em 5 de março. Diante da avaliação de uma tendência à rápida implosão do Plano, o próprio Lula falou para se contrapor e dizer - com muita sensatez - que não era concebível que a equipe econômica, que tinha feito o Plano para ganhar as eleições, produzisse um desastre tão grande num prazo tão curto.

Nas semanas seguintes ficou claro que não haveria colapso do plano a curto prazo. No entanto, a professora Conceição Tavares continuou a exagerar nas suas avaliações os problemas da URV. Dizia, por exemplo, que no lugar de uma tendência ao alinhamento dos preços com base naquela unidade de conta, o que estava acontecendo era um desalinhamento crescente. E nas vésperas da introdução do real, distinguiu-se como a única voz que afirmava que a inflação, na realidade, não cairia, pois o critério correto seria comparar a inflação em reais com a inflação em URVs (e não, como todos estavam fazendo, comparar a inflação em reais com a inflação em cruzeiros reais). Esta argumentação foi apresentada, novamente de forma muito enfática, para o Diretório Nacional do PT, em 26 de junho, e publicada na Folha de S. Paulo do mesmo dia, no artigo "Semana de cão prepara entrada do real".

Esta posição merece um comentário. Não há dúvidas de que tecnicamente é interessante comparar a inflação em reais com a inflação em URVS. Mas o que conta para a avaliação do impacto popular da mudança de moeda? Obviamente, é a comparação da inflação nas moedas que as pessoas têm no bolso - reais depois, cruzeiros reais antes. E aí, não havia dúvidas de que as pessoas sentiriam uma queda drástica da inflação.

Mas a questão de qual seria o impacto do real não se esgotava em saber o que aconteceria com a inflação.

O impacto da entrada da nova moeda foi tão grande porque, além da queda da inflação - o que por si só já seria um ganho importante -, ela foi acompanhada por alguma recuperação do poder aquisitivo da população, especialmente a de renda mais baixa, sem acesso à moeda indexada, devido à redução drástica do "imposto inflacionário"; e porque além disso houve, por esta e outras razões, uma expansão da economia.

Havia plenas condições de fazer esta avaliação naquele momento, ou mesmo antes. Por exemplo, já na reunião do Diretório Nacional de 5 de março esta posição foi exposta por Paulo Nogueira Batista Jr. - valendo-se para isto da experiência internacional existente em programas de estabilização semelhantes. Posteriormente, no texto "O Plano Real e a campanha eleitoral", elaborado para a Coordenação da Campanha Lula em 14 de junho, por Paulo Nogueira e por mim (que circulou com poucas cópias - não foi possível expô-lo para a Coordenação), a avaliação de que com a entrada do real, além da queda drástica das taxas mensais de inflação em julho, agosto e setembro, haveria uma recuperação parcial do poder de compra dos salários dos setores que não têm acesso à moeda indexada e uma tendência ao aumento da demanda e dos níveis de produção foi repetida. Na segunda versão do texto "Estabilização com crescimento e distribuição de renda", preparada para a reunião do Diretório Nacional de 26 de junho, já citado anteriormente, a mesma avaliação foi feita mais uma vez*.

No entanto, não houve condições de fazer uma exposição deste texto para os membros do DN, e a discussão realizada aí terminou se transformando em uma polêmica com a professora Maria da Conceição Tavares. Além de iniciar a discussão já mencionada, sobre se era ou não correto falar em queda da inflação, ela defendeu (sempre com ênfase) a posição de que não haveria nenhuma recuperação do poder de compra da população de renda mais baixa, e que não haveria aumento da demanda e da produção; que, ao contrário, haveria recessão.

Esta posição - a de que o Plano Real teria um caráter recessivo, inclusive a curto prazo - vinha sendo defendida durante todo o mês de junho, em diversas reuniões de economistas e de instâncias dirigentes do partido, pela professora Conceição Tavares (que manteria esta avaliação até o fim de julho, como se vê no artigo "A novela do Plano Real ainda continua", publicado na Folha de S. Paulo, de 31 de julho) e por inúmeros outros economistas do PT. Por exemplo, o documento "O PT e o Plano Real", fruto de uma reunião de muitos economistas coordenada por Aloizio Mercadante, realizada entre 30 de junho e 1º de julho, assinalava na abertura: "o novo plano, que foi vendido como diferente e imaginoso, acabou sendo reduzido ao velho aperto monetário, concentrador de renda e recessivo", e na conclusão "a desaceleração da economia já vem sendo observada e o aumento do desemprego é inevitável".

Além de posições expressas em reuniões ou em declarações de dirigentes, esta avaliação do caráter recessivo imediato do Plano Real está presente em artigos de alguns dos principais economistas do PT, como Guido Mantega ("As fantasias do real", na Folha de S. Paulo, de 12/07) e Paul Singer, ("A paulada na inflação saiu pela culatra" - este prevendo até mesmo uma "deflação selvagem" - na Folha de S. Paulo, de 24/07).

Os membros do Diretório Nacional presentes na reunião de 26 de junho ficaram com a impressão de uma grande confusão dos economistas; Luiz Eduardo Greenhalgh observou que a avaliação sobre a entrada do real levada pelos economistas à reunião era de que "ou choveria, ou faria sol". Para sermos mais exatos, deveríamos dizer que alguns economistas diziam que faria sol, e outros que choveria.

A Coordenação da Campanha Lula que quando o real entrou teve de se dedicar por algum tempo ao "caso Bisol", o que dificultou nesse momento discussões sobre a situação econômica - terminou trabalhando com as avaliações equivocadas de que haveria recessão e mais perdas salariais. Quando começou a ficar claro que a população aprovava o real e começava a mudar o seu voto, de Lula para Fernando Henrique, acreditou-se ainda que com mais algum tempo a população perceberia a existência da recessão e das perdas salariais, e ficaria mais receptiva a críticas ao plano. A influência de Aloizio Mercadante foi decisiva para que esta avaliação fosse adotada em meados de julho, e foi com base nela que uma série de comícios chegou a ser marcada para o início de agosto nas principais capitais, para iniciar uma "contra-ofensiva" da candidatura Lula.

Com estas observações não estou obviamente desconhecendo as perdas salariais das primeiras fases do plano (que no entanto não devemos exagerar, pois muitas categorias tiveram reajustes acima do que a lei da URV estipulava), o nível infame do salário mínimo, nem os prejuízos para a população com o Fundo Social de Emergência, e muito menos estou dizendo que não devíamos ter criticado o Plano Real. A questão é que este plano foi eleitoreiro até em ter colocado as medidas que atingiam negativamente a população no início, reservando os aspectos que seriam sentidos positivamente para os meses imediatamente anteriores às eleições (queda da inflação, recuperação parcial do poder aquisitivo da população de baixa renda, expansão da demanda e da produção), deixando outros problemas mais sérios para o futuro.

É preciso reconhecer que os erros de análise do Plano Real, cometidos pela nossa campanha antes da mudança da moeda e logo depois, pesaram negativamente no nosso resultado. Contribuíram, em primeiro lugar, para a subestimação do impacto da entrada do real e para a adoção de uma linha de tentar o impossível: evitar que o tema da inflação fosse central na campanha; e portanto contribuíram para que não nos preparássemos adequadamente para a mudança da situação eleitoral no início de julho. Em segundo lugar, levaram a que fossem feitas críticas ao plano logo contraditadas pela realidade, e para sustentar a ilusão de que a população, no início de agosto, perceberia o arrocho (que houve, mas que foi atenuado com a entrada do real) e a recessão (que não houve). Naturalmente, na mesma época foram feitas também muitas críticas bem fundamentadas; mas, misturadas com colocações incorretas, seu resultado foi reduzido.

A falta de uma discussão mais aprofundada do Plano Real contribuiu também para que, mesmo quando os erros de análise foram sendo superados, a partir de agosto, não teria sido possível encontrar uma boa maneira de tratar a questão da inflação. Naquela altura era particularmente difícil fazer uma discussão sistemática, bem refletida. Assim, as posições da campanha oscilaram, e quando foi reprisada a idéia de "moeda forte com salário forte", ou quando se disse que "'combater a inflação só não basta", foi a prática reforçada a idéia de que Fernando Henrique Cardoso tinha conseguido realmente vencer a inflação.

É claro que poderíamos ter perdido a eleição mesmo com um discurso econômico mais apropriado. Mas sem dúvida teríamos tido condições muito melhores de enfrentar o desafio. E os erros de análise do Plano Real não eram inevitáveis, tanto que houve avaliações mais realistas durante as discussões. Mesmo o problema, muito mais complexo, de formular um plano de combate a inflação concreto para a campanha Lula, e que conseguisse um razoável consenso, não era insolúvel - desde que as instâncias dirigentes da campanha definissem esta prioridade. Esta constatação nos leva à necessidade de rever a forma de tratar as questões econômicas no PT.

Novo padrão de discussão

O objetivo deste artigo, além de contribuir para uma avaliação da campanha eleitoral de 1994, é o de chamar a atenção para a necessidade de estabelecermos uma forma mais regular, sistemática e coletiva de discussão dos problemas econômicos brasileiros entre os economistas de partido e nas instâncias de direção. Como foi dito anteriormente, se tivéssemos já uma prática neste sentido teríamos uma posição melhor para tratar as dificuldades desta campanha eleitoral.

Além disso, todas as discussões econômicas realizadas durante a campanha permanecem plenamente atuais. Por exemplo, continua a ser uma exigência da situação que o PT apresente sua visão do combate à inflação hoje, bem como alternativas às medidas que vêm sendo tomadas ou que serão adotadas pela equipe econômica do governo. Esta é mais uma razão para voltarmos ao que foram nossas divergências durante a campanha e para que tentemos superá-las.

Naturalmente, tenho consciência de que nas observações anteriores foram feitas críticas importantes a companheiros do partido, pela participação que tiveram no debate econômico durante a campanha. Acredito, no entanto, que são críticas escrupulosas, e necessárias. Alguns dos erros de avaliação apontados são normais em questões econômicas. Outros são mais difíceis de justificar, sobretudo pela maneira com que foram formulados e expostos. De qualquer maneira, uma das melhores qualidades demonstradas pelo PT em toda a sua história é a de não fugir ao debate franco e aberto. E este é um momento em que este debate não pode ser evitado.

  • Os dois textos citados foram publicados em dezembro na coletânea Combate à Inflação, Plano Real e Campanha Eleitoral, por iniciativa de Eduardo Suplicy, João Machado, Luiz Carlos Merege, Odilon Guedes e Paulo Nogueira Batista Jr.

João Machado foi coordenador adjunto da Comissão de Programa de Governo e membro da Coordenação da Campanha Lula-94. É membro da Executiva Nacional do PT