Sociedade

Depoimentos e análises sobre os legados deixados pelos mortos e desaparecidos da ditadura militar e o despontar do resgate da memória por alguns governos petistas

Seis assassinatos marcam a fase final da ditadura gerida pelos militares no Brasil: Vladimir Herzog (out. 75), Manoel Fiel Filho (jan. 76), Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Baptista Drummond (dez. 76) e Santo Dias (out. 79).

O massacre da Lapa (São Paulo - SP), quando foram assassinados no local Pomar e Arroyo e, Drummond, já nas instalações da Operação Bandeirantes, significou o último golpe da direita contra organizações de esquerda de inspiração marxista que pegaram em armas. Na Lapa esteve reunida a mais alta direção do PCdoB, responsável pela guerrilha do Araguaia. A guerrilha fora derrotada e seus combatentes permanecem até hoje "desaparecidos". Na Lapa, avaliava-se exatamente o episódio, e a direção do PCdoB - meio a divergências - buscava novos rumos para sua política.

O isolamento que as Forças Armadas impuseram ao Araguaia, de certo modo estendeu-se àquele massacre. Apesar dos protestos e das notícias terem sido veiculados pela grande mídia; apesar da pronta intervenção de Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo - graças à qual se evitou que outros presos tivessem a mesma sorte de Drummond; apesar da indignação de vários setores, a condenação desse massacre que completará em dezembro 20 anos, não se traduziu em manifestação coletiva, massiva.

Os casos Herzog, Fiel Filho e Santo Dias, no entanto, marearão de outro modo a política brasileira. No caso Herzog, o culto ecumênico realizado na Sé de São Paulo e que reuniu mais de 10 mil pessoas, representou a primeira grande manifestação pública de protesto desde a decretação do AI-5 (dez. 68).

No caso Fiel Filho, a pressão política levou à primeira derrubada (pelas forças mais progressistas da sociedade de então) de um general da ditadura: Eduardo D'Ávila Mello, comandante do II Exército, responsável pela Oban, onde foram assassinados Herzog e Fiel Filho.

Por fim, o assassinato de Santo Dias levou às ruas de São Paulo mais de 30 mil pessoas que acompanharam seu cortejo fúnebre.

Estas e outras considerações dão a dimensão do legado político desses companheiros que representam centenas de outros mortos e "desaparecidos". No entanto, há um outra tipo de herança, mais pessoal, mais próxima. Individual. E é isto que vamos buscar em entrevistas com Clarice, Tereza e Ana, viúvas respectivamente de Vladimir, Fiel Filho e Santo. Uma amostra da situação e do entendimento dos familiares dos mortos e "desaparecidos".

A postura do stablishment brasileiro desde a Anistia de 1979, foi a de dar o assunto por encerrado. Porém, os familiares, com persistência e tenacidade, têm encontrado fôlego para resistir, pressionar e obter vitórias - mesmo que parciais. Além dos familiares, serão alguns amigos e umas poucas centenas de homens e mulheres que vêm insistindo no assunto. As autoridades de plantão desde o fim da ditadura negaceiam mas acabam obrigadas a conceder. A última delas, a lei de FHC. Sobre isto, fala o deputado Nilmário Miranda (PT-MG), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e autor do projeto que a instituiu. Outras comissões do gênero vêm sendo criadas e implantadas. A mais recente é a da Assembléia Legislativa de São Paulo, proposta e presidida pelo deputado Renato Simões (PT-SP).

Algumas prefeituras também trabalham esta questão. Em março de 94 (30 anos do golpe), a vereadora Maria do Rosário (PT - Porto Alegre/RS) apresentou à Câmara local projeto de lei que autorizou o Executivo municipal a construir um monumento em memória dos mortos e "desaparecidos". Depois de concurso público, a Prefeitura de Porto Alegre, dirigida pelo petista Tarso Genro, inaugurou em novembro passado um Memorial aos Mortos e Desaparecidos. Enquanto isso, em Diadema (SP), o prefeito José de Filippi Júnior inicia campanha em defesa dos Direitos Humanos, colocando os nomes de Heleny Guariba ("desaparecida" desde 71) e Vladimir Herzog em dois centros culturais, e Manoel Fiei Filho e Devanir José de Carvalho (assassinado em 1971) em prédios que abrigam simultaneamente escolas e creches municipais.

Ao mesmo tempo, a Companhia Editora de Pernambuco e o governo desse estado imprimem e publicam com prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns e apresentação do governador de Pernambuco, Miguel Arraes (PSB), o mais completo Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 de que temos notícia. O trabalho foi organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, pelo Instituto de Estudo da Violência do Estado-IVE, e pelos grupos Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e de Pernambuco.

Todas essas iniciativas, capitaneadas quase sempre por petistas - como o importante trabalho de Luíza Erundina em torno da descoberta da sinistra Vala de Perus, onde "desaparecidos" vão sendo a cada dia identificados meio a mais de um milhar de ossadas de "indigentes", e que resultou na instalação da CEI da Câmara Municipal paulistana na qual se destacaram os vereadores petistas Thereza Laiolo e Ítalo Cardoso - não derivam no entanto de uma política clara do Partido dos Trabalhadores.

Para completar o quadro, convidamos Luci Gati e Cecília Coimbra a escreverem ensaios sobre o assunto. Luci trata da "Herança dos Herdeiros", ou seja, dos caminhos da elaboração da subjetividade dos familiares dos "desaparecidos". Cecília Coimbra, por sua vez, trata especificamente da utilização das técnicas "psi" (da psicologia e da psicanálise em suas diversas variantes) pelo regime militar, no sentido de patologizar a militância política dos anos 60 e 70 e as tentativas daqueles senhores fardados de, naturalizando a ditadura e psicologizando o cotidiano, responsabilizar os núcleos familiares pela dissidência e "desajuste" dos jovens militantes.

O ensaio de Cecília faz parte do seu trabalho publicado no final de 1995 em livro, Os Guardiões da Ordem, onde, partindo do correto entendimento da não neutralidade das ciências e das técnicas, mostra como os saberes e práticas "psi" daqueles anos cumpriram o papel de aliados do regime militar. Os "Guardiões de Veste" são os psicanalistas e psicólogos.

Com Cecília e Luci, podemos compreender cada vez melhor as práticas "invisíveis" mas de ação cotidiana da dominação burguesa durante aquele período. A cada dia, assim, vamos montando o quebra-cabeças dos "Anos de Chumbo". Um quebra-cabeças cuja única possibilidade de conclusão é a delineamento dos traços da sutil - ma non troppo - dominação atual. (AF)