Colunas | Juventudes

Pode-se dizer que as plataformas organizam o processo produtivo sem propriamente investir em nenhum dos três fatores de produção da teoria econômica clássica: terra, capital e trabalho

O fenômeno do trabalho por plataformas é costumeiramente chamado de "uberização". Cresceu de forma avassaladora nos últimos anos, no Brasil e no mundo. Para alguns, é difícil imaginar como era a vida antes dos aplicativos de delivery e de transporte. Esses e outros serviços se incorporaram em nosso cotidiano e são empregados por indivíduos e empresas, desde pequenas startups até as grandes firmas listadas na Fortune 500. O número de plataformas em operação passou de 142 em 2010 para 777 em 20201 globalmente.

O surgimento desse novo tipo de trabalho, ou melhor, dessas novas formas de contratação e organização do trabalho, se apoia em duas inovações do mundo contemporâneo: a internet, em especial com a conexão de banda larga, e a computação em nuvem. Aqui, a commodity em questão são os próprios dados, ao passo que a infraestrutura é um dos serviços prestados. Essa movimentação de dados em tempo real e em larga escala faz das "plataformas digitais de trabalho" parte distintiva do que tem sido chamado de "economia digital".

O universo dos trabalhos por plataformas foi analisado no relatório "Emprego mundial e perspectiva social: o papel das plataformas digitais de trabalho na transformação do mundo do trabalho", lançado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em fevereiro de 2021. Foram mais de 12 mil trabalhadores pesquisados, pertencentes a setenta empreendimentos, dezesseis plataformas corporativas e quatorze plataformas associativas de trabalhadores2, presentes em múltiplos setores e em mais de cem países.

Segundo o estudo, há duas modalidades principais de plataformas em operação: as online web-based platforms e as location-based platforms. No primeiro caso os clientes buscam trabalhadores reunidos no espaço digital da plataforma, tais como serviços de tradução, orientação jurídica, financeiros, design, programação e outros. No segundo, mais disseminado no Brasil, são os trabalhadores quem vão ao encontro dos clientes e prestam serviços em locais específicos (ou em trânsito), caso dos deliveries, transporte, trabalho doméstico e de cuidado etc.

Uma das características comuns observadas em meio a enorme variedade de perfis e tarefas é a faixa etária média dos trabalhadores: inferior a 35 anos. Programadores têm, em média, apenas 22 anos de idade. No geral, observou-se ainda que trabalhadores do Sul Global (ditos em desenvolvimento) costumam ser mais novos do que os do Norte3. Quanto ao nível de escolaridade, embora heterogêneo, verifica-se alta escolaridade média. Os homens são maioria: 60% do contingente das plataformas online web-based e apenas 90% das plataformas location-based.

Outro traço marcante é a crescente heterogeneidade dos serviços prestados, ancorados em uma diversidade de arranjos produtivos remotos. No entanto, essa multiplicidade contrasta com a relativa homogeneidade dos sistemas de operação. Isto é, grosso modo, as plataformas ligam consumidores e trabalhadores por meio de algoritmos. Pode-se dizer que elas organizam o processo produtivo sem propriamente investir em nenhum dos três fatores de produção da teoria econômica clássica: terra, capital e trabalho. Esse território cinzento é, aliás, o que permite dribles judiciais e sustenta as desobrigações de encargos e responsabilidades trabalhistas e outros deveres sociais por parte das empresas. A principal disputa é sobre a condição de trabalho. Para as empresas, os trabalhadores são classificados como conta própria, prestadores de serviços, autônomos, terceirizados, empreendedores e por aí vai. São tudo isso, menos trabalhadores (no sentido que vincula obrigações contratuais aos seus respectivos empregadores).

A estrutura da plataforma PeoplePerHour é elucidativa do papel de mediação entre clientes e trabalhadores: cerca de cinquenta funcionários diretamente contratados administram um contingente em movimento de 2,4 milhões de prestadores de serviços nos mais variados ramos. A Uber emprega 26.900 pessoas e tem mais de 5 milhões de motoristas. Já a Rappi conta com 1.500 funcionários e possui 25 mil entregadores.

Como na maior parte dos casos não há pagamentos de salário, a extração da mais valia envolve a cobrança de taxas de adesão (taxas e termos de adesão supostamente voluntários) e comissões dos próprios trabalhadores (62%) e dos clientes (38%). As empresas lucram sem investir na contratação e/ou na formação da mão de obra. Os lucros parecem compensar: somente em 2019 a receita das plataformas foi de US$ 52 bilhões, altamente concentrada nos Estados Unidos (49%) e na China (23%). A concentração é também em termos das firmas: 5% delas (21 empresas) detêm 20% do resultado líquido (net income) do setor4.

Em termos de jornada de trabalho, é unânime que homens e mulheres de aplicativos trabalham muitas horas, não raro mais que 12 horas diárias. Os impactos sobre a saúde física e mental são sentidos dia a dia e vão se acumulando. As jornadas podem se intensificar ainda mais conforme a necessidade econômica dos trabalhadores. Esse é o caso de Ricky Turner, personagem do filme Você Não Estava Aqui (Ken Loach, 2019) e da maioria dos motoristas. 69% deles são donos do próprio automóvel e 70% incorreram em dívidas e empréstimos para adquirir seus meios de trabalho, os automóveis.

O monitoramento e as formas de controle do trabalho nessas longas jornadas são cada vez mais sofisticados, sustentados pelo avanço das tecnologias. Tais controles se aplicam até mesmo para trabalhadores freelancer, o que soa como contradição, pois não condiz muito com a ideia de autonomia imbuída na proposta. Entre os freelancers, 47% são monitorados por horas trabalhadas; 46% precisam enviar print-screen (fotos da tela do computador) aos empregadores e 43% são demandados em intervalos de horas específicas.

As jornadas extenuantes são frequentemente ingratas, haja vista que os algoritmos não são concebidos para favorecer os trabalhadores. O estímulo permanente para mais trabalho vem acompanhado de pressões dos clientes, manifestas em classificações e notas (ratings). Parte do trabalho prestado pode ser simplesmente recusado pelos clientes e não há espaços coletivos ou tripartite de contestação das reclamações e denúncias por parte dos trabalhadores. Um caminho comum da resolução dos conflitos é a dispensa dos trabalhadores, ou seja, sua exclusão da plataforma.

Mais um indicativo da complexidade desse cenário? Contraditoriamente ou não, a maior parte dos trabalhadores se diz satisfeito e/ou muito satisfeito com o trabalho. Que fatores explicam os níveis de satisfação? Embora a pesquisa não tenha aprofundado no assunto, argumentos comumente mobilizados enfatizam as liberdades, ainda que relativas, propiciadas por esses trabalhos. A tão propagandiada flexibilidade traz algumas vantagens, especialmente para trabalhadores que enfrentam preconceitos e discriminações nos ambientes de trabalho (mulheres, negras e negros, imigrantes, LGBTIA+, portadores de deficiência). No caso das mulheres, os trabalhos nas plataformas online são, de alguma maneira, compatíveis com as tarefas de cuidado doméstico e de crianças e idosos, por exemplo.

Outra vantagem tem a ver com a economia de tempo e dinheiro dos longos deslocamentos até o trabalho, fonte de muito desconforto e stress para os trabalhadores. Finalmente, um terceiro aspecto, é relativo ao que seria o contraponto ao trabalho, ou seja, o desemprego. Estar trabalhando é, portanto, motivo de satisfação para todos eles.

Isso não significa que estão suficientemente satisfeitos ou que não busquem direitos trabalhistas e a proteção social. Tema que é, por certo, um capítulo à parte nesse debate. Importantes lutas vêm sendo travadas nos últimos anos, com algumas conquistas a se comemorar. Em termos de mobilizações, entre janeiro de 2017 e julho de 2020, foram registradas mais de 1.200 ações em 57 países, sendo mais de cem em países como Argentina, China, Índia e EUA. As principais reivindicações são por melhores remunerações (64%), revisão ou reinterpretação legal para fins de obtenção de direitos trabalhistas (20%), condições de saúde e segurança (19%) e aspectos regulatórios (17%). Nota-se que durante a pandemia, as demandas por saúde e segurança estiveram no centro de mais da metade das disputas na América Latina.

A organização política desses trabalhadores possui especificidades. Mais de 80% delas foi realizada por grupos informais. A relação com os sindicatos é heterogênea e frágil (um pouco mais forte na Europa, Austrália e Nova Zelândia). As taxas de sindicalização são ainda mais baixas do que entre o conjunto dos trabalhadores. Apenas 5% dos trabalhadores de microtarefas, 1% nos freelancers, menos de 3% dos motoristas e quase 0% dos entregadores são sindicalizados. A não filiação sindical pode ter várias razões e não significa recusa da organização coletiva. Muitos trabalhadores têm buscado se organizar – ou pelo menos se comunicar. Tanto é assim que 28% dos motoristas e 33% dos entregadores informaram participar de algum grupo de Whatsapp ou mídia social relacionado ao trabalho. Algumas greves já começaram a ocorrer, casos das greves dos entregadores do Brasil (breque dos apps) e da Argentina. Em março tivemos a oportunidade de aprofundar um pouco mais no assunto ao ouvir a fala de Paulo Galo, um dos líderes do movimento de Entregadores AntiFacisctas, em uma atividade da Fundação Perseu Abramo. Em outros países (Áustria, Alemanha e Suécia) sindicatos criaram o Fair CrowdWork website, que provê informações sobre as plataformas de trabalho e presta uma série de auxílios aos trabalhadores. A formação de plataformas colaborativas, espécie de cooperativa de trabalhadores, é uma realidade em diversos países e já começa a ser exercitada no Brasil. A luta por mudanças legais é outra frente de disputas. Em novembro de 2020 comentamos sobre o plebiscito na Califórnia/EUA, que visava classificar os trabalhadores dos apps como empregados ao invés de autônomos, e que infelizmente foi derrotado. No Brasil já temos casos em que a Justiça do Trabalho reconheceu direitos de motoristas de Uber.

Retomando a pergunta que intitula esse texto sobre "quem é a classe trabalhadora hoje?", um aspecto que sobressai é a diversidade. Diversidade de perfis de trabalhadores e diversidade e desigualdade das formas de inserção no mercado de trabalho. Conforme aponta Anna Tsing, em seu "Supply chains and the human condition" (2009), não é de hoje que o capitalismo explora essa diversidade no curso do processo de acumulação. A flexibilidade é útil e mesmo indispensável para superexplorar o trabalho e a natureza.

Mas a diversidade também é força em potencial dos trabalhadores e pode ser acionada em movimento de contrapé e forjar movimentos tão resilientes e propositivos quanto é diversa a classe trabalhadora.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)