Política

Milhares de homens e mulheres, reunidos em suas agremiações, viveram o século 20 lutando para construir o socialismo em vários lugares do planeta e marcando a trajetória de diferentes gerações. Teoria e Debate nesta seção, nos últimos 20 anos, captou as lembranças de velhos comunistas no momento de consolidação do projeto petista no cenário nacional

Os partidos políticos, nas sociedades ocidentais contemporâneas – diante da ampliação das dimensões do Estado e das esferas públicas de poder – ainda são, por excelência, o lugar da mediação política (Berstein, 1996, p. 60), mesmo com a crise de paradigmas e de representação das últimas décadas. Eles possuem uma tradição que exprime uma visão de mundo. Depositários dessa cultura política, milhares de homens e mulheres, reunidos em suas agremiações, injetaram-lhes vida, comungando de crenças e códigos de valores que constituíram as suas referências mais importantes. Por isso, este texto trata, sobretudo, de vivências e memórias. Lembranças de militantes e simpatizantes que viveram o século 20 nutrindo um desejo: a construção do socialismo no Brasil. Esse anseio moveu corações e mentes em vários lugares do planeta, marcando a trajetória de diferentes gerações. Por meio dos seus relatos, os fragmentos de tais percursos confirmam como as suas memórias, projetos e retrospectivas foram fundamentais para a permanência de uma identidade social (Velho, 1999, p. 101).

As lembranças de velhos comunistas foram captadas pela revista Teoria e Debate, uma das principais publicações do Partido dos Trabalhadores, num momento de consolidação do projeto petista no cenário nacional. Esses depoimentos revelavam as aproximações e os distanciamentos entre as perspectivas e as possibilidades colocadas para o PT. Mas o transformavam no desaguadouro de diversas tradições que, em determinado momento histórico, confrontaram-se com a concepção comunista predominante no Brasil até os anos 1960.

Trabalhar com a geração pré-64 significa definir que a identidade geracional é uma influência marcante sobre o comportamento político das múltiplas experiências que compõem um partido (Berstein, 1996, p. 72). O conceito de geração posiciona esses atores sociais de maneira distinta diante de determinados acontecimentos da conjuntura brasileira, fatos inauguradores que teceram sentimentos de pertencimento. Em entrevista, o comunista Apolônio de Carvalho afirmava os sentidos que definiam a geração de 64: “Uma geração privilegiada que abarcou as três fases de maior participação popular no Brasil: anos 30, 60 e a atual” (TD, nº 6, 1989). Essa geração, fortemente identificada com o movimento comunista internacional estruturado a partir da hegemonia soviética, pode ser dividida em dois grandes grupos: os militantes e simpatizantes do PCB – muitos dos quais, nos anos 1950 e 1960, apresentaram divergências e rupturas com o partido – e os militantes organizados em torno dos vários grupos trotskistas e do Partido Socialista Brasileiro.

Os inúmeros depoimentos concedidos por velhos comunistas, agora petistas, à revista Teoria e Debate denotaram a grande importância da seção Memória para o projeto político da publicação. Eles apresentaram um conjunto de significações para a posição do Partido dos Trabalhadores no âmbito das esquerdas brasileiras: um momento-chave de consolidação no cenário nacional e de reflexão sobre as estratégias de transformação por ocasião da mais grave crise do campo socialista internacional. Contudo, esta seção não pretendia rememorar passagens e lembranças da fundação ou da participação de tais militantes na agremiação. As perguntas desse tipo apareciam finalizando as entrevistas, concluindo provisoriamente uma trajetória. A revista visava a apresentar as suas histórias de vida e como essas experiências desaguaram no partido. Indicavam-se temores, contradições e críticas diante de algumas das suas características. Apontava-se a necessidade de maior nitidez política sobre a sua opção pelo socialismo e pela revolução. Mas essas tradições críticas encontravam-se finalmente no seio do PT.

Nas disputas pela memória, os jornalistas e intelectuais da revista optaram por fazer da seção um espaço de resgate de tais trajetórias. Privilegiaram o indivíduo na história enquanto sujeito que, no seio das esquerdas, foi capaz de “mudar o caráter de sua relação com instituições pré-existentes” (Velho, 1999, p. 98) num campo de diversas possibilidades. As histórias desses homens e mulheres tornavam-se parte da tradição de um partido muito jovem. A interpretação do passado desses militantes e simpatizantes das esquerdas pré-64 definia fronteiras e pontos de referência claros em relação à tradição socialista. Entretanto, mesmo entre eles a cultura política não era única. Dependia do seu lugar social no transcorrer das décadas de 1930 a 1960: militante ou intelectual, homem ou mulher, oriundo das classes médias ou populares, membros do PCB ou não. Eis algumas clivagens encontradas. Apesar das distinções, eles partilhavam de um sistema de crenças, de uma cultura política que procuravam encontrar no Partido dos Trabalhadores.

Compreendendo as entrevistas como o “resíduo de uma ação interativa” (Alberti, 2004, p. 95), uma comunicação entre entrevistado e entrevistador objetivando interpretar o passado, a seleção operada pela seção Memória desvelou não somente a história de vida desses militantes, mas sobretudo produziu sentidos por meio dessas trajetórias inserindo o Partido dos Trabalhadores na tradição das esquerdas. As “batalhas da memória” (Pollak, 1989, p. 4) travadas pelos velhos comunistas nas páginas de Teoria e Debate legitimaram o papel central do PT nas esquerdas, conferindo-lhe como herança a legítima tradição que se embateu no campo do movimento socialista no Brasil pré-64.

Um paradoxo: o PT era apresentado como o “novo” em seu processo de formação e acusado até mesmo de anticomunista –  como relembrava a militante Clara Charf sobre a sua decisão de se filiar após décadas de militância no PCB e no movimento clandestino (TD, nº 8, 1989) –, as indagações da revista costuraram rupturas, apesar de o projeto petista não retomar o modelo clássico dos partidos marxistas e comunistas.

Memórias: trajetórias e retrospectivas

A revolução russa de 1917 causou um grande impacto na vida desses homens e mulheres. As primeiras notícias e idéias sobre o socialismo soviético originaram-se, em grande parte, das relações familiares e afetivas. Num momento bastante agitado da história política mundial, que girava em torno da revolução de outubro, a existência da URSS tornava possível e concreta a luta pela utopia do comunismo em escala mundial. Eles partilharam dessas crenças que se combinavam às experiências vividas.

No Brasil, os relatos sobre o turbilhão do processo revolucionário chegaram pelas mãos dos anarquistas. Nas lembranças de Fúlvio Abramo, Antonio Candido e Armando Mazzo, por exemplo, essa influência relacionava-se diretamente à idéia de caráter e afetividade, uma marca que se registrou na moral do ser comunista. Antonio Candido rememorava a importância de uma anarquista, vizinha e amiga de sua mãe, Teresa Carini Rocchi. Simpática à revolução russa, era exemplo de completo desprendimento e de reduzido senso de propriedade. Embora as primeiras leituras tenham sido apresentadas por outros colegas, veio dela a relação afetiva com o socialismo. Fúlvio Abramo também remetia à influência do avô anarquista as primeiras leituras revolucionárias, feitas em publicações italianas.

Em outros casos, além da influência familiar, das leituras ou da militância, a adesão ao socialismo aconteceu a partir da experiência concreta no trabalho. Lélia Abramo discordava da ascendência do avô na formação da sua consciência social e na de seus irmãos, conforme eles pensavam. Atribuía mais à influência paterna. Mas tornou-se socialista no escritório de uma fábrica de passamanarias onde trabalhava com as tabelas de produção, ao perceber “o mecanismo da sociedade capitalista” (TD, nº 5, 1989). O mesmo ocorreu com Florestan Fernandes, um jovem trabalhador pobre que se aproximou do socialismo por intermédio do encontro com anarquistas, socialistas e comunistas na época em que trabalhava como aprendiz, ampliando uma “inquietação social de caráter populista” (TD, nº 13, 1991).

O movimento antifascista também compôs a identidade dos militantes comunistas nos anos 1930. O relato de Apolônio de Carvalho destacava os significados dessa luta para toda uma geração: “Era uma bandeira universal naquele tempo” (TD, nº 6, 1989). No seu caso, esse sentimento consolidou-se com a adesão à Aliança Nacional Libertadora (ANL), antes da filiação ao PCB, inexistente no Rio Grande do Sul, auxiliado pelas idéias vigentes no exército, fruto da herança tenentista que favorecia uma visão contestatória.

As batalhas em torno da formação da ANL e da Insurreição Comunista de 1935 também expressaram as críticas sobre o papel do Partido Comunista Brasileiro no país. Para Fúlvio Abramo, a criação da Frente Única Antifascista (FUA), em São Paulo, foi precedida pelas disputas com o PC, que, devido às pressões dos militantes da Juventude Comunista, aderiu ao movimento (TD, nº 1, 1987). Qualificando o evento como um grave equívoco político, uma “quartelada” para Armando Mazzo (TD, nº 3, 1988) ou um putsch para Plínio Mello (TD, nº 7, 1989), o levante de 1935 revelava os problemas do partido na relação com os outros grupos, inclusive com a própria ANL, surpreendendo todos, até os comunistas. Para Apolônio de Carvalho (TD, nº 6, 1989), o principal erro localizava-se em julho de 1935, com a divulgação do Manifesto de Julho, que, ao lançar uma verdadeira declaração de guerra a Getúlio Vargas, deu ao Estado a possibilidade de jogar a ANL na ilegalidade. A preparação do movimento desvelava uma série de impasses existentes na trajetória das esquerdas, ainda não debatidos e explicados ao povo brasileiro. A má avaliação da conjuntura, a subestimação do adversário e a presença de uma cultura no Brasil que destacava a solução armada, tudo isso não era apenas um erro historicamente demarcado, mas a expressão de um problema permanente até os dias atuais: “Essa confusão entre desejo e realidade é uma das fontes de erro da esquerda em todas as fases de nossa vida, da nossa trajetória” (TD, nº 6, 1989). Na época, a compreensão dos militantes foi distinta. A maioria deles, presa nos cárceres do Estado Novo, declarava o movimento de 1935 legítimo e acreditava na sua continuidade. Muitos filiaram-se ao PCB naquele momento (TD, nº 6, 1989).

A avaliação política do trabalhismo até hoje gera divergentes opiniões nas ciências sociais e nas esquerdas. Em 1945, os comunistas brasileiros posicionaram-se de forma distinta em relação à sucessão de Vargas. Antonio Candido ingressava na militância no fim de 1942, no Grupo Radical de Ação Popular (Grap), cuja atividade era contra Getúlio Vargas (TD, nº 2, 1988). Numa análise retrospectiva, Apolônio de Carvalho, então um comunista recém-chegado da Europa, após a sua participação na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial, indicava que, naquele momento, o partido havia colocado por terra “a sua condição de organização superior revolucionária da classe operária para ser mais um partido político participante da vida nacional em colaboração com a burguesia nacional” (TD, nº 6, 1989).

Contrários à linha de união nacional em torno de Vargas contra o nazifascismo, militantes comunistas como Fúlvio Abramo, Antonio Candido e Plínio Mello optaram por um outro caminho para o desenvolvimento das esquerdas no Brasil. Cindidos pelas divergências de concepção com o partido comunista e em relação à herança varguista, engajaram-se na UDN – “um estuário de gente de esquerda que não fechava com o partidão” –, na adesão à candidatura de Góes Monteiro à presidência da República. Logo depois participaram da formação da esquerda democrática – transformada em PSB no ano de 1947 (TD, nº 7, 1989). Essa diferença permaneceu no transcorrer dos anos seguintes, materializando-se inclusive no apoio de alguns desses militantes à candidatura de Jânio Quadros à prefeitura de São Paulo. Na entrevista a esta revista, Fúlvio Abramo considerou essa opção um erro político (TD, nº 1, 1987). No Partido dos Trabalhadores, a tradição crítica ao trabalhismo apresentou desde cedo profundas raízes que concebemos como parte da herança constituída no transcorrer dos anos 1950 e 1960.

O 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética foi um dos acontecimentos políticos mais significativos para a interpretação do passado, feita por esses militantes da geração pré-64. Para Isaac Akcelrud, o Congresso havia sido um marco mais importante do que a queda de Gorbatchev (TD, nº 18, 1992). Muitos ficaram abaladíssimos, como relembrava Clara Charf, militante do PCB e companheira de Carlos Marighella. Ele mesmo chorou na tribuna quando Diógenes Arruda confirmou os fatos numa reunião do comitê central (TD, nº 8, 1989). Entretanto, para alguns militantes as revelações não trouxeram surpresas. Jacob Gorender e Idealina Fernandes tomaram conhecimento da terrível notícia  na viagem feita à URSS para um curso de formação. Lá, devido ao processo de desestalinização, um clima de maior abertura propiciava o debate, inclusive nos jornais, sobre os crimes de Stalin.

Apolônio de Carvalho, também participante do curso de formação, relembrava não possuir o culto à personalidade, apesar de manter uma visão mística sobre a infalibilidade do partido. Nesse caso, a revelação não causou “nenhuma angústia nem qualquer dano particular”. A decepção havia acontecido anos antes, na Guerra Civil Espanhola, em relação ao papel de Stalin nesse processo revolucionário (TD, nº 6, 1989).

O golpe civil-militar de 1964 demarcou definitivamente os caminhos dessa geração de comunistas no Brasil. Na sua interpretação do passado, os militantes do PCB avaliavam que o partido possuía uma linha política “fora da realidade” – fruto da opção pelo socialismo de via pacífica e das ilusões com a burguesia nacional com a qual deveria estabelecer uma aliança estratégica para a revolução democrática-nacional. Além de politicamente desprevenido, a luta interna havia sido deflagrada desde o 20º congresso do PCUS. Para a militante Clara Charf, o partido, de forma equivocada, confiava que o povo estava cada vez mais forte, mas Marighella acreditava no desfecho do golpe (TD, nº 8, 1989).

As visões sobre a luta armada expressaram os conflitos latentes existentes no seio das esquerdas brasileiras. Nos depoimentos, uma questão central: a legitimidade da luta armada ou o conformismo e o pacifismo do PCB – opinião inclusive partilhada por militantes que se declararam contra o caminho da guerrilha, como Apolônio de Carvalho no PCBR. Gorender avaliava que esse dilema tornara-se desastroso para as esquerdas, arrastadas pelo turbilhão do fascínio das armas, uma psicologia do revanchismo romântico e fatores internacionais (TD, nº 11, 1990). Apolônio complementava destacando a presença de uma vocação tenentista, a descrença na via eleitoral e nas alianças com outras agremiações.

O sucesso dos seqüestros reforçava uma ilusão de força, ignorando o vigoroso crescimento econômico do Brasil e, consequentemente, a necessidade de repensar a estratégia e a tática, como Gorender realizava em suas reflexões na prisão. Da mesma forma, Florestan Fernandes justificava a recusa ao convite para chefiar um grupo na guerrilha.

Memórias: trajetórias e projetos

Apesar dos caminhos distintos de pecebistas, trotskistas ou socialistas, as memórias desses militantes da geração pré-64, em retrospectiva, interpretaram o passado, reelaborando as suas militâncias e convicções sobre a revolução e o socialismo. O mesmo passado, entretanto, era a pedra basilar para traçar prospectivas, identificadas na possibilidade de construção do Partido dos Trabalhadores enquanto um modelo diferente, um outro projeto revolucionário para o Brasil. A nova proposta deveria preocupar-se, e muito, com a formação política. A frágil fundamentação teórica e o burocratismo do PC justificavam a não-adesão de Fúlvio Abramo ao partido: “Tudo chegava de forma esquemática ou por intermédio do entusiasmo, como aquele expresso no livro de John Reed” (TD, nº 1, 1987). Da mesma maneira, Goffredo Telles Jr. e Florestan Fernandes não se filiaram porque não toleravam o burocratismo e o autoritarismo existente naquela tradição. Sem pretender se desculpar, Jacob Gorender relembrava a sua aceitação da versão stalinista do marxismo. Mas, mesmo sufocando tais percepções, enxergava as contradições e a inferioridade da obra de Stalin, os chavões dos materiais soviéticos e os jargões bajulatórios. Ele também criticava o tipo de comportamento esperado dos militantes: servil, sem capacidade crítica diante de seus superiores partidários (TD, nº 11, 1990).

Socialistas como Fúlvio Abramo construíram estratégias distintas daquelas hegemônicas no movimento comunista internacional. Desde 1928, ele criticava a visão sobre a revolução mundial e o processo de burocratização na União Soviética, aproximando-se dos trotskistas Lívio Xavier e Mário Pedrosa (TD, nº 1, 1987). Devido à grande influência do socialista Paulo Emílio Salles, Antonio Candido, nos anos 1930, já refutava a polaridade e defendia “um socialismo nem trotskista nem stalinista, desinteressado das internacionais, democrático e socialista” (TD, nº 2, 1988). Outros militantes, de maneira mais fluida, também afirmavam o seu tipo de socialismo. Para a madre Cristina, ele deveria ser “democrático e cristão, de origem brasileira” (TD, nº 9, 1990). Ou um socialismo no “sentido analógico”, uma perfeição da democracia, como preferia Goffredo Telles Jr.: “A tendência da democracia é uma tendência socialista para a esquerda” (TD, nº 12, 1990).

A concepção de socialismo e de revolução expressava, sem dúvida, as retrospectivas feitas com as interpretações do passado, mas também as projeções de militantes, convictos das posições elaboradas nas suas trajetórias. Dessa forma, a crise do socialismo real foi captada pelos radares de Idealina Fernandes Gorender: “Uma sensação de ludibriamento”. Mas o otimismo e a fé nas transformações entre esses revolucionários ressaltavam a possibilidade de o mundo mudar e o fato de os povos estarem mais alertas (TD, nº 22, 1993). Para Jacob Gorender, a morte do modelo stalinista deixava o capitalismo em condições de vantagem na atual conjuntura. Além da necessidade de renovação e de criatividade do marxismo, não era mais possível fugir da realidade: “Penso que essa é a pior de todas as crises. É a mais grave, porque agora se colocou em causa a possibilidade do próprio projeto de construção de uma nova sociedade, inspirada em princípios socialistas” (TD, nº 11, 1990). A queda desse tipo de socialismo, na visão de Florestan Fernandes, faria o mesmo voltar a ser a promessa pura e completa que era no passado. Uma sociedade socialista, com democracia da maioria, igualdade com liberdade e humanismo – este último um princípio rejeitado por vários agrupamentos marxistas nos anos 1960 (TD, nº 13, 1991).

Na contracorrente, Goffredo Telles Jr. ia além: “O mundo agora caminhava em direção ao socialismo”. Apesar da existência de uma quinta-coluna capitalista dentro da URSS – o próprio Mikhail Gorbatchev –, os trabalhadores liberados pela perestroika não queriam o capitalismo (TD, nº 12, 1990).

Em relação às possibilidades de evolução do Partido dos Trabalhadores, a maior parte dos depoentes demonstrava otimismo com as perspectivas de ele tornar-se realmente uma alternativa revolucionária para o Brasil. A comunista Maria Augusta Capistrano sintetizava o significado da estrela (TD, nº 23, 1993): “O PT hoje é o herdeiro das lutas da classe operária brasileira, o partido que defende os interesses da classe operária dentro de uma formulação de acordo com uma época que está se vivendo”. Nas prospectivas desses comunistas, o PT se constituía como a principal referência das esquerdas, aquele que poderia “exercer melhor do que qualquer partido a função de unir a classe trabalhadora com o setor mais miserável do proletariado” (TD, nº 13, 1991). Entretanto, Armando Mazzo, um simpatizante, apesar de destacar a existência de excelentes quadros, via a necessidade de o partido avançar ideologicamente para se tornar revolucionário. Essa preocupação aparecia no pensamento de muitos militantes dessa geração: a adoção de um projeto socialista consistente, repensar a questão das bases, do messianismo e da resistência do partido às políticas de frente.

O depoimento de Apolônio de Carvalho tecia uma fina ligação entre o projeto petista e a tradição comunista no Brasil pré-64, da qual fora um dos construtores. Ele defendia um equilíbrio na análise sobre o PT, pois se focalizava bastante a ruptura, e não a continuidade existente. Por isso refutava a idéia de seu companheiro, também fundador do Partido dos Trabalhadores, Mário Pedrosa, de que a agremiação começaria tudo de novo. Para ele o PT ainda guardava muito das idéias e concepções da esquerda tradicional (TD, nº 6, 1989): “O PT não começa tudo de novo, mas passa a ser o grande elemento de confiança, de esperança, algo novo para a vida militante de cada um de nós (...). O PT guarda ainda um bocado das coisas da esquerda, e dentro do amor imenso que nós temos pelo PT, acho que o PT guarda ainda muito do cerco das idéias e concepções da esquerda tradicional”.

A seção Memória de Teoria e Debate contribuiu para o processo de construção da identidade do Partido dos Trabalhadores. Uma identidade que o relacionava às múltiplas tradições dos movimentos das esquerdas no Brasil. Portanto, o PT possuía uma história. Ou várias histórias, que não começavam nas greves dos metalúrgicos do ABC paulista no final dos anos 1970. Dando voz aos velhos comunistas da geração pré-64, o partido estabeleceu laços com os “acontecimentos vividos por tabela” (Pollak, 1989, p. 2).

Num momento de grave crise de identidade do PT, revisitar as lembranças dos velhos comunistas da geração pré-64 coloca ao partido o desafio de reatualizar o seu projeto à luz das transformações radicais do mundo contemporâneo, sem, contudo, perder a perspectiva de uma tradição herdada da trajetória desses revolucionários.

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Izabel Cristina Gomes da Costa é doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, professora da rede municipal do Rio de Janeiro e de História do Direito da Ucam.